Quando o jornalista Severo Crudo estava sendo sepultado no final da tarde do último dia 14, eu dava mais um novo passo na minha vida profissional. Às vésperas de completar 28 anos de carreira e próximo dos meus 52 anos. Uma coincidência paradoxalmente triste e alegre para mim. Porque não dá para dissociar o início do meu trilhar como jornalista de minha convivência com o amigo Severo.
Algumas histórias que compartilhei com ele dão ilustram bem quem era Severo Crudo, descendente de italianos, mas com sua paciência oriental. Talvez pela convivência com sua esposa, Matilde, também jornalista, de ascendência japonesa. Quem conviveu com ele na redação de A Gazeta nos idos dos anos 1991 e 92, se recorda bem do seu jeito calmo e sereno e da forma peculiar de se sentar à frente do computador, com as pernas cruzadas, como se fosse um psicanalista investigando a alma de cada texto. Não me recordo exatamente quando conheci Severo Crudo. Lembro que foi ainda no início da década de 80, em meio à efervescência da luta contra a ditadura militar e depois na batalha pelas Diretas, que colocaria fim ao regime militar em 1985.
Até então o meu partido, o PC do B, ainda estava na clandestinidade e eu sobrevivia ali em Rondonópolis na corda bamba, sofrendo ameaças de todos os lados no meu trabalho de organização partidária.
Foi quando conheci Severo e Matilde. Em meio a uma imprensa totalmente aliada aos poderosos das oligarquias econômicas e políticas que dominavam a cidade, foi um alento encontrar dois jornalistas com idéias e ideais libertários. Foram meus exemplos profissionais.
Em 1983 Rondonópolis passou a ter uma administração de marca popular, a do então prefeito Carlos Bezerra (PMDB), e eu, junto com o trabalho clandestino do PC do B, atuava na organização de associações de moradores, sindicatos e núcleos rurais. O movimento social era apoiado pela prefeitura e encontrava todo tipo de resistência da direita local. Só para ilustrar, Rondonópolis foi uma das principais cidades onde estava organizada no país a ultra-direitista União Democrática Ruralista (UDR), que combateu a reforma agrária e ajudou a sabotar o governo Sarney. Ali também existia (e ainda existe) a anticomunista TFP (Tradição Família, Propriedade), entidade ligada à ala ultra-direita da Igreja Católica.
Era neste contexto que atuávamos e nosso trabalho só não encontrou mais dificuldade porque tínhamos o apoio de pessoas como Severo e Matilde. Não foram poucas as vezes, por exemplo, que eles nos emprestavam um dos carros da família para desenvolvermos nosso trabalho político. Lembro até hoje: era um velho Corcel II e uma velha Variant, que eram usados por ele e pela Matilde. Quando um dos carros ficava a nossa disposição, a família tinha que se reorganizar. Severo também quis nos emprestar uma casa que a família possuía num conjunto habitacional da cidade, mas a reforma do espaço inviabilizou.
Anos mais tarde, já ambos morando em Cuiabá, além de trabalhar com ele na redação de A Gazeta, dividimos também espaços no movimento sindical. Naquela época, início dos anos 90, eu era secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas, presidido por Regina Deliberai, e ajudei a liderar o primeiro movimento grevista da história do jornalismo mato-grossense. E lá estava o Severo participando conosco, com sua cabeleira branca destoando daquele bando de jovens.
Em outras ocasiões – pelo menos em duas que presenciei: na eleição das gestões presididas por Antonio Peres e Fábio Carvalho – Severo e outros profissionais da então chamada velha-guarda do jornalismo mato-grossense, como Ailton Segura, ajudou a garantir a vitória, numa mobilização extremamente difícil. Foram tempos em que o sindicalismo em geral sofria um grande refluxo, e os jornalistas, em particular, estavam muito apáticos e desmobilizados.
Naquele final de tarde do dia 14 de fevereiro, conversei com a Matilde. Foi uma conversa rápida ao telefone. Ela já estava partindo com o corpo do Severo para o sepultamento. Mas foi suficiente para a Matilde me relatar a forma com ele se foi: serena e tranqüila.
(*) JOÃO NEGRÃO é jornalista e editor executivo da revista BSB Brasil Agenda, em Brasília.
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