Em relação à predação das fronteiras agrícolas, Euclides da Cunha – em sua obra À Margem da História, ainda em 1909 - denominou os primeiros ocupantes da Amazônia como “Fazedores de Deserto” porque transformavam paraísos terrestres em ermos isolados. Uma única espécie reivindicando mais territórios do que precisa a despeito de esquartejamento de tantas outras cujos números atordoaria nossa imaginação. Isso soa como uma injustiça sob qualquer escrutínio que optamos: moral, secular, universal. A questão é: fazemos diferente agora? Ou ainda vigora os correntões infames, incêndios desautorizados e revolvimento por arados em contínua colonização de extermínio? O que seria em uma interpretação mais elástica essa conversão da floresta em deserto? Podemos inferir nessa hipótese que a humanidade tem capacidade de dizimar milhares de outras formas de vida.
Em um passado recente, governos, corporações privadas e uma legião de pessoas olharam para os biomas Pantanal, Cerrado e Amazônia e disseram algo como “aqui não tem nada”. Mas, poderia ser o contrário: aqui tem tudo. Sim, um mundo milenar com ecossistema complexo e funcional coordenado por dança simbiótica de autopreservação que se manteve equilibrado por tempos imemoriais. Povos aborígenes e milhares de organismo de fauna e flora movidos apenas por impulsos de luz coexistiram em delicadas conexões em seus níveis microscópicos nutridos por energia de baixa entropia.
Usurpamos seus lugares e rompemos laços ecológicos. Em uma única geração milhões de hectares desmatados nos três biomas como desfecho de políticas instadas pelo próprio estado brasileiro em condução errática, clonando erros de outras culturas pelo mundo, quando opostamente deveríamos aprender com os excessos que cometeram. Discursos sedutores de crescimento infinito proveniente da difusão exagerada de abundâncias ao nosso dispor. Uma quase ‘evangelização’ à qual estamos expostos por argumentos falaciosos de que somos senhores absolutos de tudo que nos rodeia.
“A primeira lição da economia é a escassez: nunca há algo em quantidade suficiente para satisfazer os que querem. A primeira lição da política é desconsiderar a primeira lição da economia.” Thomas Sowel. Estamos desfrutando de um pote limitado de recursos.
Mundos antes selvagens ficaram imperturbados até o florescer de novos assentamentos humanos. Como em tanto outros lugares no planeta, nas latitudes dos trópicos se observou um expressivo avanço antropocêntrico sobre vegetação nativa causando desequilíbrio nos mecanismos de fotossíntese, portanto, na produção e reciclagem de carbono. Flora e fauna silentes são aniquiladas por ocupações humanas que açoitam territórios idílicos. Árvores centenárias, rios caudalosos, biodiversidade destruída pela agricultura moderna. Até onde a visão alcança o horizonte não há árvore, não há rios. Vastos campos com dosséis primorosos e espaços aéreos preenchidos por aves magistrais agora são dominados por drones com dardos envenenados. É a terra da monocultura ‘pop do agro’ uma economia pujante que enriquece dinastias e fortalece suas dinâmicas de poder. [São quase 200 deputados na Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) demonstrando sua capacidade de coalizões em temas do agronegócio].
Estradas, igrejas, hospitais e shoppings são alguns dos elementos arquitetônicos construídos sobre organismos carbonizados. Tudo o que existia se transformou em cinzas. Cidades suntuosas onde fixamos nossos confortáveis lares estão sobre pilhas de ossos de outras criaturas, às vezes consideradas meros ornamentos fósseis, portanto fáceis de serem esquecidas. Viveram aqui por centenas, talvez milhares de anos e nos deixaram como legado essa verdadeira dádiva – uma paisagem íntegra para que nós a ocupássemos. Deveríamos no mínimo ser gratos. Foram criaturas de uma vida frugal, guardiões dos lugares que agora nos protege a alimenta. Nenhum desses animais destruíram seu próprio habitat por pura vaidade. Quanto a nós, fazemos o contrário, inundamos de plástico todos os biomas do planeta, estocamos materiais radioativos com potencial de extinguir a vida na terra. Lançamos mercúrio nos rios, contaminamos solo e atmosfera com agentes químicos como o sarin, a ricina, o polônio-210, o cianeto de hidrogênio e outros componentes da lista dos doze malditos. Espalhamos glifosato e inseticidas banidos na Europa. Enquanto esses elixires mortais não existiam, nosso DNA permanecia latente, encapsulado, para emergir em algum ponto do tempo, destituído em grande parte de prudência, moderação e altruísmo. Em uma escala milenar o paraíso ficou protegido por esses viventes para que o herdássemos e agora estamos em panteão cuja prepotência não enxergar limites para ameaçá-lo.
Atravessamos o caminho dessas criaturas. Nossa civilização ‘inteligente’ - uma sociedade narcisista que exagera o senso da própria importância - e que deliberadamente flerta com a sorte desmontando celeremente toda a engenhosidade que a natureza esculpiu em sua longa trajetória.
Resta saber se a ecologia com a qual nos deparamos permanecerá longeva alcançando gerações vindouras, para que também tenham a oportunidade de usufruir de uma ‘era de ouro’ de ofertas ecológicas. Infelizmente há por toda parte sinais evidentes de degradação sistêmica. No nosso tempo estamos inserindo no ambiente formas energo-intensivas como artefatos de aço, concreto, vidro e lama asfáltica, componente arrancado das entranhas da terra para bloquear sua própria respiração.
Precisamos de mais território? Há um uníssono sim. Nunca é o bastante. No planeta, milhões de humanos continuam nascendo exigindo suplementos alimentares e expansão em infraestrutura. Os poucos espaços selvagens nativos continuam a acumular inimigos poderosos: exército de famintos, oportunistas de plantão, infratores contumazes, especulares gananciosos, legisladores complacentes e leniência legal – agravados por negacionistas para quem estatística, fatos e ciência são seus mundos singulares repletos de premissas corrompidas.
Não é preciso ser adepto da ecologia profunda para, mesmo em bosque preservado, presenciar o berço de espécies, ouvir sussurros ancestrais, sentir o conforto térmico, o perfume e a textura vegetal, testemunhar processos orgânicos reconstrutivos, apreciar a transporte de nutrientes pela seiva, observar a dispersão de sementes, admirar cores esfuziantes e nascentes tímidas borbulhante na terra. Tudo parte do grande esquema da criação cujo emaranhado genético nos autolegitimamos para mutilar. Catapultado por busca de lucro e por compulsão ao consumo incessante, logo este olimpo estará calcinado pelo fogo ocupado por planteis bovinos ou por máquinas expelindo materiais particulados e óxido de nitrogênio - mesmo que alinhados às demandas globais de agricultura de baixo carbono.
Somos inteligentes demais para ignorar as consequências de um declínio do suporte à vida de nosso ambiente ecológico. Então, seria evitável esse quadro melancólico? Podemos fazer diferente? Queremos fazer? Enquanto isso, milhões de hectares terras já degradadas poderiam ser reaproveitadas por nossa triunfante tecnologia. Há espaços para aumento de produtividade com agricultura de precisão. Há oportunidades para redução perdas de quase ¼ da produção mundial de alimentos. Vozes doutas vislumbram cenários distintos: o que plantar, onde fazê-lo e como distribuir. Como tratar a concentração fundiária deletéria à produção de alimentos em menores escala, repensar suas linhas creditícias, difusão de tecnologias limpas e incentivos à sua ampliação.
As ideias que temos de progresso parecem um pouco turvadas por visões de grandeza, ao menos, pela quantidade crescente de matéria e energia que drenamos para ostentar nosso estilo de vida, modo esse, que também injeta toneladas de resíduos tóxicos que se assemelham a uma bomba relógio capaz de cobrar o seu preço. Estamos propensos a admitir que existe um problema? Estaríamos inclinados a algum tipo de renúncia?
(*) PAULO CÉZAR DE SOUZA é mestre em economia pela UFMT.
email: [email protected]
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