Na Comarca a que Mato Verde estava jurisdicionada, o cargo do titular sempre fora de homem, juiz; num tempo em que mulher, mesmo apenas como advogada, era coisa rara de se ver atuando nos tribunais e espaços masculinizados da justiça. Assim, com a promoção do juiz para outra Comarca, em meados dos anos de 1980, foi uma surpresa uma mulher ser nomeada para ocupar o cargo; mulher refinada, de modos contidos e leves, riso econômico no falar cotidiano, informal, que contrastava com a dureza na fala institucional, com a toga a lhe cobrir os ombros e a normalidade do seu ser. Mas o mundo elevado do gabinete de um juiz e, mais ainda, a sala de audiência e suas liturgias férreas, são instâncias distantes e desconhecidas dos homens e mulheres comuns – que só as visitam quando levados por força de mandado...
Naqueles tempos, de sertões com suas imensidões de terras virgens, incultas, cujos acessos por estradas de lama, buracos e pó, estabeleciam lonjuras proibitivas para quem não tivesse negócios ou urgências de família para tratar ali, a autoridade da mulher se restringia aos cômodos da casa; somente ali, sua presença e cuidados eram exigidos diária e exaustivamente, inclusive para o prazer do homem, que ensejava a produção de mão de obra para os trabalhos rurais. Ainda que fosse a presença ativa do que vivificava a família, o poder patriarcal a apagava solenemente, impondo-lhe silêncios de não poder ser quebrado nem na alcova, a indicar algum gozo. O patriarcado impunha e impõe medos, que impõem silêncios, que parecem candura...
Houve briga de vizinhos de terras e gado, envolvendo o velho Alfredo Amaral, homem chucro, de caráter forjado na lida bruta com os baguais, dono de gado e terras a perder de vista; briga por tentação dos animais do velho fazendeiro, que estavam a destruir plantação do sitiante Jurandir Viriato. Sem conciliação, acabaram indo às barras do tribunal; nem ano tinha, desde que a Doutora Rosana de Albuquerque tomara posse no cargo de Juiz, quando chegou às suas mãos delicadas, aquele processo. No dia marcado para a Audiência, dispuseram-se em sua frente, a contragosto, as partes carrancudas e silentes. A juíza abriu a seção, cumprimentando todos e fazendo votos de que chegassem a bom termo, mediante entendimento benigno e justo; mas, em meio aos seus prolegômenos, foi interrompida pelo estrondear da voz mandona do velho Alfredo carregada de autoridade patronal, patriarcal: “– Dona, cadê o seu marido? Chame ele aqui, porque eu num faço negóço com mulher, não!” O silêncio tomou conta do ambiente, sequestrando ouvido
Eram tempos tão difíceis para as mulheres, que, a submissão vivida, não se podia dizer ser uma fragilidade de caráter, nem acomodação de espírito preguiçoso; de fato, sem aparo do Estado, sem a condição própria para viver, e sob leis e procedimentos confirmadores do poder e da moral patriarcal, os comportamentos e gestos obsequiosos da mulher em geral, eram-lhes a forma necessária de ser para seguir quase viva, ainda que esquecida de si: vivia, para os filhos e, em regra, suportando um marido-senhor. A normalidade nos diversos ambientes da sociedade, todos, da casa à igreja, conformavam-nas para um ser sem horizonte próprio, sem sonhos de ser por si; daí, sem ver movimento de mudança no modo de ser e viver, remanseavam naquelas águas mansas e turvas, acalantando com paciências a alma, para a conformação necessária...
A gente vai formando o ambiente necessário e possível pra nele habitar, na labuta, no descanso, no viver, sem nem enxergar no andar dos segundos, que esse ambiente criado vai sendo recriado pelo próprio viver, de jeito que o ser de cada um se acomoda no movimento dessa formação sem fim – e tal que, com o correr dos anos, esse ser nem se parece muito mais com aquele inicial. Disso, dizia Benedito Carreiro, aprendido na mansidão de carrear na estrada sem termo: “Um boi bravo e com força de muitos homens, depois de amansado, vem sozinho receber a canga e carregar o carro... gente é um pouco assim, também – né, não?” Ele disse, repetindo aquilo, quando Ana Amélia, mulher esguia e de rosto bem formado, com fala mansa, de delicadeza cativante, quase foi morta por esfaqueamento, desferido por Rodolfo Ambrosiano: homem-marido, que era trabalhador e paciencioso, mas, quando bebia, parecia possuído por coisa ruim: queria brigar na rua, quebrava as coisas em casa, ameaçava bater, até desfalecer cominado pelo álcool; ac
Num dia, à tardezinha, quando o sol dourava a grama e as árvores baixas que ladeavam o campinho de futebol, sumindo no horizonte, fazendo o gado se deitar aconchegando-se no próprio calor para dormir e enfrentar o friozinho da madrugada – os meninos que subiam a rua principal tagarelando depois do jogo de bola, defrontaram-se com uma mulher em correria, gritando por ajuda, tentando escapar de um agressor. Era Ana Amélia que, sem a elegância que lhe era característica, corria desesperadamente do marido enlouquecido; ia gritando por socorro, o vestido e os cabelos esvoaçavam desalinhados. Descalça corria, sem destino de amparo à sua vida, sem quem lhe socorresse e enfrentasse o homem violento que brandia uma faca peixeira, tentando alcança-la; então, cansada, enfraquecida, olhos esbugalhados de medo, caiu se enredando na tela da cerca da casa de Dona Zulmira. Ali ficou desagasalhada, mãos e pés agitando-se no ar, defendendo-se dos golpes do homem enfurecido que, sem conseguir atingir-lhe o peito a barriga, o c
A polícia chegou e arrancou o homem de sobre Ana Amélia, algemou-o sem que oferecesse resistência, sem confrontar soltou a faca ensanguentada no chão, que a polícia recolheu e o fez entrar na viatura, levando-o preso para a delegacia. Ana Amélia jazeu alquebrada, amontoada no próprio corpo violentado, com o vestido esfarrapado e ensanguentado, gemendo gemido fraco, em suspiros de ais sem força; algumas pessoas se aproximaram e, com muito cuidado pra não lhe aumentarem as dores, levaram-na nos braços até um colchão agasalhando na carroceria de uma caminhonete. O carro ganhou a estrada poeirenta com Ana Amélia deitada, silente, gemendo dor doída a lhe ferir a alma, seguiu ladeada por duas conhecidas, que a amparavam tentando diminuir o desconforto e sofrimento nos solavancos do carro na estrada de chão: foram duas horas de viagem sofrida, até chegaram no hospital da cidade vizinha. Ali, o médico olhou e, vendo que nenhum ferimento alcançara profundidade mortal, fez preparar acomodações, materiais e medicamento
Por duas semanas Ana Amélia amargou as horas no hospital, recuperando-se dos cortes e perfurações: curativos doloridos, injeções e soro, cheiro ruim de hospital, cama desconfortável, gente com cara de piedade, conversas à meia voz e comida sem gosto de fogão à lenha e tempero bom. “Amanhã, depois do meio-dia, não havendo nada que nos desautorize, a senhora poderá ir pra casa!” Disse-lhe alvissareiro Dr. Leocádio, médico sexagenário, que conhecia o corpo e a alma humana como poucos, cuja fama de bom médico se espalhara por todos aqueles sertões; atendia no mesmo lugar há quase cinquenta anos: desde quando chegou em São Gabriel do Riachão, e adquiriu, ampliou e transformou a antiga residência que alugara, no hospital em que Ana Amélia foi tratada e agora recebia alta. Ali, Dr. Leocádio atendeu e tratou gente com e sem dinheiro, conhecidos e anônimos, a todos dispensando sempre seus modos serenos, pacienciosos, alentadores. Sim, tem gente que nasce pra cuidar, aliviar sofrimento, fazer rir contentes as pessoas,
Quase um mês depois do ocorrido, Ana Amélia voltou pra casa. Vizinhos e conhecidos foram visita-la, ver as cicatrizes, ouvir a história do ocorrido por sua boca, alentá-la para um tempo novo de viver, querendo ajuda-la para recomeçar, esquecida do fato medonho. Mas, encabulados, viram que ela não parecia tão alquebrada como imaginaram, nem entristecida, de jeito a não despertar dó em quem a visitasse; demonstrava, isto sim, certo desconforto e enfado falar e ouvir sobre o fato, aí suscitou comentários desconfiados, bisbilhoteiros: “Viu, o jeito dela? Parece sem graça, aborrecida com a gente querer falar sobre o acontecido... Sei, não, viu!” Sim, Ana Amélia recebia as pessoas de mal jeito, como se para desacorçoa-las de lembrar o que lhe ocorrera, que esquecessem, apagasse da memória do lugar aquilo tudo...
Corria meados de dezembro, quase mês desde que voltara do hospital, nenhuma dor mais sentia, somente as cicatrizes nos braços apareciam desinibidas; assim, arrefecidas as lembranças do ocorrido, morta a macabra novidade na lembrança do lugar, tudo estaria quase à normalidade de antes, não fosse o fato de que Rodolfo Ambrosiano ainda estivesse preso, ali mesmo. Então, no finzinho da tarde da sexta-feira que antecedia o Natal, domingo, na Hora da Ave-Maria, Ana Amélia saiu de casa, banhada, vestida incomumente e exalando discreto perfume: caminhou prudente, sem pressa, parecendo ir a lugar comum, corriqueiro, sem despertar olhar fuxiqueiro. “Boa Noite, Senhora!”, respondeu-lhe a autoridade formalmente, a ouvir a solicitação tímida, envergonhada, dela; que, para evitar alarido e demora, fez de viva voz, à meia voz, considerações, ponderações e aquele pedido final, dizendo palavras à guisa de conciliação: explicou, esclareceu sentimentos, chorou a fragilidade de ser só, em face do homem que a ouvia, anotando tud
Era sábado, no lusco-fusco: cabisbaixo, olhar no chão, com a vergonha pesando-lhe nos ombros, Ambrosiano saiu, olhou ao redor e caminhou pra casa sob uns poucos olhares curiosos e silentes; a rua conhecida o via passar cheia de indagações, com um ou outro comentário em sussurro. Ele seguiu mudo, sem cumprimentar qualquer, remoído de sentimentos, ouvindo os próprios passos na rua descalça, virou a esquina, o coração em descompasso, diminuído ao que era, sentia-se enfraquecido para ser novamente; aí chorou, quando a porta se abriu: viu nas mãos brancas que abriam, as feridas cicatrizadas a denunciarem a maldade, a sua maldade. Sentou-se na cadeira da sala, rosto entre as mãos pra não mostrar a fraqueza do choro, disse sem levantar os olhos: “Vamo embora daqui, Amélia, vamo?”, pediu, implorando. “Não, Ambrosiano! Vergonha maior tenho, eu; tu, seja do jeito que disse que será, mas, aqui: à vista de quem te viu fazer o que fez...”. Silêncio...
Ana Amélia dormiu sono solto, profundo; acordou com batidas na porta e gritos de espanto, de terror: o lado de Ambrosiano na cama estava sem marcas de uso. Vestiu a camisola rosa-grená e, às pressas, abriu a porta da casa, o sopro da brisa mansa e fria fez o tecido leve da camisola lhe marcar o corpo, e ficou ali, estupefata, as pernas se enfraqueceram sem forças para sustentar o corpo, que foi se amolecendo, desfalecendo, ante a cena terrível que totalizava a pequena varanda da casa: Ambrosiano estava suspenso no ar, braços caídos ao longo do corpo inerte, o rosto escurecido, inchado, quase irreconhecível, estrangulado pelo nó de laço da corda que o atava à travessa do telhado da varanda. Morto estava, pra sempre, com todos os seus consigos, segredados a si, definitivamente – dele o que ficava, ficava no olhar de quem o teve, talvez...
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