Cenário de um episódio terrível na história cuiabana, o Candeeiro já foi repleto de vida e amor.
O chão que, como resposta, foi lavado pelo sangue do massacre dos meninos, durante muito tempo, foi o caminho preferido pelos pés de seu povo.
Reduto de famílias e comerciantes, o beco, do mercado Gama com seu Euzébio à frente do caixa, de dona Epifânia na janela, cheirando à pão fresco da padaria do seu Omar, sereno e doce como os passos de seu Dito do Guaraná e alegrado pelas festas de Pedro Celestino, foi campo de muitos sonhos semeados.
Corredor para os estudantes da Escola Técnica seguirem rumo ao ponto ônibus diante do Morro da Luz, palco para os trabalhadores do calçadão encararem o dia e para fila de devotos com terços e lenços no bolso andarem em direção à missa de São Benedito, antes mesmo de amanhecer, a rua era viva por meio dos filhos da cidade.
Por uma janela, arremessei a bola de leite pescada na quermesse da festa no dia da procissão e levei uma bronca da vizinhança toda.
Na ponta da rua 27 de Dezembro, há uma praça. Nela, subia nas árvores, equilibrava nos bancos e mirava o movimento do calçadão iluminado com as luzes de Natal, em todo Dezembro.
Vendia colarzinhos de miçanga comprada na Kotinha pros casais que namoravam, escutava o milho arrastando no alumínio da panela do pipoqueiro e admirava a beleza das cores de chiclete no algodão que adoçava aquele tempo.
Na grama, enterrei um peixe e um passarinho em caixões feitos de caixa de sapatos e cruzes de palito de picolé.
Às vezes, no meio da brincadeira, lembrava do cemitério e parava, de pé, pra fazer uma oração pros meus bichinhos e, logo em seguida, continuava correndo.
Nesta rua, que foi minha, ladrilhada com pedrinhas que todos os amores de minha infância passaram, meu avô botava a mesa do escritório no meio da rua, com centenas de livros “pra tomarem sol”.
Não era comum carro entrar ali. Desta maneira, uma vez na semana, a cultura era mais importante do que a pressa em ignorar a poesia do caminho.
Curiosos passavam, folheavam os exemplares, puxavam conversa conosco, pediam uma história de presente e, às vezes, a gente entregava ao novo amigo um pedaço daquele instante e, também, de nós.
Cuidando das obras, aos domingos, ouvia, bem alto, a música nascida no aparelho de som com as vozes de Chico, Nogueira e Clara vindas da sala do meio.
Rasguei o joelho embalada pelo Oceano de Djavan. E, assim, derramada em lágrimas oriundas dos tropeços iniciais da vida, aprendi a emergir de duras quedas.
Da porta do lar que me abrigou dos 3 aos 11 anos, seja por meio de canção ou saudade, vira e mexe, imagino, dobrando à esquina, meu saudoso avô com seus óculos, sapato social pintado com nugget, calça manchada de tinta de caneta e a velha camisa curta de botão com o tecido transparente de tanto lavar, sorrindo, trazendo um gibi e seu jornal debaixo do braço, numa manhã com a mesa na rua, pela última vez.
(*) FLÁVIA PIRES, Escritora, Compositora e Servidora Pública
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