Há muito tempo meus pais moravam em área rural pouco habitada. Minha mãe relatou-me que quando grávida da minha pessoa, passava por muitas horas de medo desde o escurecer até altas horas da noite, quando finalmente ela conseguia dormir. E por que isso acontecia? É que meu pai costumava ir à cidade mais próxima, a uns 30 km de distância, e não retornava durante o dia. A companhia agradável dos "amigos de copo" auxiliava na procrastinação do seu retorno e fazia-o esquecer a lista de compras planejada antes de sua viagem.
Durante a infância tive atenção e excelentes ensinamentos da minha mãe. O meu pai era alegre e bom humorista. Eles se esforçaram para me educar e assim concluí o 1o. grau em uma cidade do interior. Passando as férias com eles, fui a uma grande festa de casamento. Lá, encontrei um rapaz, e, pelas poucas falas que tivemos, deixou-me com certa curiosidade. Em seguida, vim para Cuiabá cursar o ensino médio, onde me matriculei em dois cursos, Normal e Técnico em Contabilidade.
Um certo dia reencontrei o rapaz da festa e nós passamos a ter encontros frequentes. Desses encontros, surgiu o desejo de assumir um compromisso de namoro. Eu era muito insegura, e não conhecia nada do comportamento emocional das pessoas, e também não percebi que eu estava na iminência de ter ao meu lado, para a vida toda, uma pessoa brilhante, mas ao mesmo tempo, extremamente ansiosa. Dentro de alguns meses ela já queria o nosso casamento. Fiquei apreensiva por um curto prazo, mas acabei aceitando. Em pouco tempo nós nos casamos.
A bebida era bastante familiar e, no início, eu até contribuía com os objetos específicos para esse uso. A nossa vida de casados teve altos e baixos e, nos primeiros anos foi maravilhosa.
Depois de um certo tempo, percebi que algumas pessoas de comportamento desequilibrado faziam-lhe companhia nas saídas nos finais de semana. Ele só retornava de madrugada. Sem entender absolutamente nada dos malefícios da diversão com jogos e bebidas, eu pouco dormia. Essa rotina aos poucos tomou conta dele. Saía de casa para beber e, na volta, caminhava direto para a cama. O meu sentimento de impotência era cada vez maior ao vê-lo extremamente abatido pelo cansaço de noites mal dormidas.
Satisfazer a necessidade do corpo faz bem, mas como evitar a próxima compulsão que o obrigava a repetir o ciclo da ingestão da bebida com tanta frequência. O detalhe é que, mesmo com aquele comportamento compulsivo, eu não ouvia uma mensagem plausível dele, de modo a poder ajudá-lo a retomar o caminho da sobriedade. Eu ainda era muito imatura. Na maioria das vezes, ele era hábil em me convencer que precisava sair e que voltaria em poucos minutos. Outras vezes, como em muitas datas natalinas, o tempo passava e ele não aparecia.
Em certas época, os funcionários da empresa em que ele trabalhava foram convocados para uma reunião de AA. Com o anfiteatro lotado, assistimos importantes palestras. Eis que a certa altura o meu esposo, entendendo a mensagem de sobriedade transmitida, segurou-me pelo braço e convidou-me para nos retirarmos. Sem relutar, apenas perguntei, por quê? Sem resposta, passamos a andar isolados pelos corredores, uma vez que toda atenção da instituição estava voltada para o grande evento local.
Naquele dia, além de ter sido cúmplice dele, aumentei minha negação da doença, perdendo, com isso, uma grande chance de aprendermos mais sobre a doença do alcoolismo. De fato, ele era inteligente, evitou no momento que eu ouvisse a mensagem de recuperação, com um conteúdo de esperança, talvez para que não lhe tecesse críticas.
Minha preocupação pela forma contínua como ele consumia bebida alcoólica foi tornando-me aos poucos uma pessoa nervosa, com humor oscilante que me prejudicava cada vez mais devido ao fato de não compreender a doença. Em muitos aspectos ele era bem compreensivo comigo, apoiou-me nos estudos, no trabalho e também tivemos muita ajuda de meus pais e irmãos no cuidado com os nossos filhos; é notável ressaltar, eles gostavam muito dele.
Morando em nova residência, ele manteve o costume de sair ao entardecer para diversão durante os dias de folga. De modo rápido, ele encontrou no bairro vários endereços de bares e fez novas amizades. E nos dias em que ficava em casa conosco, tínhamos visitas de pessoas igualmente muito animadas que permaneciam até tarde da noite. Com a negação eu imaginava que o alcoolismo só acontecia com pessoas ignorantes, maltrapilhas, e por isso considerava que era apenas costume errado de farrear e beber sem limites. Mal sabia eu que ignorância e outros adjetivos podem ser consequência e não exatamente a causa.
Um certo dia, tudo parecia normal no sentido de uma família equilibrada. Ao chegar em casa, no início de noite, notei um silêncio estranho e a casa vazia, olhei de longe e não vi nem sinal de luz, tudo escuro. Logo fiquei atônita e perguntei em pensamento, onde está o meu esposo que não liga a lâmpada. Onde estaria e o que aconteceu? Para aliviar minha enorme preocupação, passei a raciocinar que deveria ser a empresa que o teria chamado para atender uma urgência e auxiliar na solução de algum apagão. Depois ele me disse que saiu para beber apenas um "suco".
Muitas vezes, do trabalho ele ia direto para o clube da empresa, onde emendava uma bebedeira ininterrupta até alta madrugada. Ter compaixão dele já era uma constante em mim, por vê-lo sem alimentação e hidratação nos horários costumeiros. Mesmo com a atividade intensa no trabalho, nos períodos de folga ele continuava ativo na bebida e mantinha-se firme, sem demonstrar sinal evidente de alcoolismo, mas seu humor era instável. E assim continuou tendo a mente afetada pelo beber doentio, tornando-se gradativamente nervoso, raivoso, até reconhecer a própria insanidade, seu fundo de poço, e um dia decidir ir ao AA.
Ele confidenciou-me que, em sua primeira reunião, ainda relutou entre o desejo de livrar-se dos dilemas da bebida, e, ao mesmo tempo, o conflito interno pelo medo de permanecer no recinto e ter que assumir responsabilidades. A dúvida se já era o momento de parar com a bebida ou continuar na negação, intensificar o vício, e prejudicar a si próprio e não expor-se na reunião, era visível. Pensou logo em retirar-se e até ameaçou sair, mas o Poder Superior se manifestou, através de um companheiro que interveio, convencendo-o a permanecer na sala.
Essa atitude fez com que ele ouvisse as sábias palavras de boas-vindas e atenção carinhosa dos presentes. Desde esse dia ele se tornou um membro assíduo de AA. Mais ou menos cerca de três meses após, muitas situações novas passaram a ocorrer com a conscientização da sobriedade; a retomada de seu comportamento normal já era incrivelmente perceptível.
Voltou a ser uma pessoa expansiva, alegre, pensava em economizar ao invés de gastar dinheiro com bebida alcoólica. E após participações frequentes nas reuniões, seminários e simpósios, desapareceu dele a ansiedade para sair; tornou-se um estudioso da literatura sugerida e também prestou serviços ao AA, atividades que ele gostava.
Depois do meu conhecimento de Al-Anon, era costume interpretarmos leituras de reflexão diária e textos das duas entidades - AA e Al-Anon. Ele era um exímio orador, embora não demonstrasse, gostava de fazer, após leituras, comentários alusivos de algumas recordações durante sua infância, juventude e vida adulta, incluindo as horas desperdiçadas com a dependência de bebida.
Reconheço que fui privilegiada pela oportunidade de escutá-lo muitas vezes, e tive muitos ensinamentos, acrescentando ao aprendizado que obtenho também junto ao programa Al-Anon. Eu também mudei muito, principalmente tomando consciência de que a compulsão pelo álcool é uma doença, e que a pessoa acometida desse mal é um ser humano especial. Esse entendimento é importante para o estabelecimento de boas relações sociais. Sou grata ao Poder Superior por tê-lo novamente ainda em vida, na sua essência natural, sóbrio, compreensivo e calmo, como esposo e líder da nossa família.
(*) NEIDE é nome fictício em respeito à tradição do Anonimato.
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