O Brasil vive hoje um fenômeno aparentemente contraditório: a menor taxa de desemprego da série histórica e um aumento consistente da renda média convivem com a sensação generalizada de que “o salário não dá”. Em todo o país, trabalhadores empregados e até com algum ganho real relatam que o dinheiro simplesmente não chega ao fim do mês. Entender essa contradição exige olhar além das estatísticas e compreender as transformações econômicas, culturais e sociais ocorridas nas últimas duas décadas.
Segundo a PNAD Contínua do IBGE, a taxa de desocupação atingiu 5,6% no trimestre encerrado em setembro de 2025 como o melhor resultado desde o início da série. A fotografia macroeconômica, vista de longe, parece positiva: mais gente trabalhando, mais massa salarial circulando e maior estabilidade no mercado de trabalho. Além disso, o IBGE registra que a renda média real domiciliar per capita alcançou em 2024 seu maior patamar histórico, sugerindo que, em média, o brasileiro ganhou um pouco mais.
Mas essa é apenas a superfície. No cotidiano, a percepção é outra, e ela não é fruto de ignorância econômica, mas de tensões concretas.
A primeira delas é estrutural: grande parte do emprego criado nos últimos anos é informal. Milhões de trabalhadores atuam sem carteira assinada, sem proteção social e com rendimentos instáveis. Assim, mesmo empregados, vivem sob constante incerteza. A taxa de subutilização da força de trabalho que inclui pessoas que trabalham menos do que gostariam ou desistiram de procurar emprego permanece alta, o que reduz o poder de barganha dos trabalhadores e limita o avanço dos salários na base da pirâmide.
A segunda tensão está nas transformações do consumo familiar desde os anos 2000. A vida contemporânea incorporou novos gastos mensais que antes não existiam, mas se tornaram quase obrigatórios para participar plenamente da sociedade: internet, TV por assinatura, streaming, softwares, serviços digitais, aplicativos, cursos online, além de um número crescente de assinaturas automáticas. Paralelamente, consolidou-se o hábito de adquirir bens duráveis celulares, eletroeletrônicos, veículos em longas prestações que se estendem por anos.
Esse conjunto de despesas fixas cria um fenômeno econômico silencioso: a drenagem constante de renda familiar. No passado, boa parte do orçamento doméstico girava em torno de gastos ajustáveis. Hoje, o brasileiro chega ao mês com uma lista de boletos praticamente permanente, que suga renda antes mesmo que ela possa circular no comércio local ou servir como poupança.
A terceira explicação é mais sutil, mas igualmente poderosa: a inflação não afeta todos da mesma forma. A alta no preço de serviços essenciais tais como: energia, alimentação, transporte urbano, cuidados pessoais pesa muito mais para os estratos de menor renda. Assim, mesmo que a renda média do país cresça, isso não significa que a mediana (que representa a maioria) avance na mesma proporção. Em outras palavras: a renda sobe no agregado, mas não sobe igual para todos.
Há também um componente sociológico. As expectativas de “vida digna” mudaram. O que era considerado conforto em 2000 tornou-se necessidade básica em 2025. A inclusão digital e o acesso a bens de consumo se tornaram marcadores de pertencimento social. Isso significa que a sensação de insuficiência não é apenas financeira, mas cultural. O indivíduo compara seu padrão de vida ao de seu grupo social e percebe que não consegue acompanhar o ritmo, mesmo trabalhando mais ou estando formalmente empregado.
Do ponto de vista filosófico, surge um dilema: o trabalho, historicamente associado à dignidade, não garante mais autonomia econômica. O brasileiro empregado se vê permanentemente insuficiente diante de despesas que se multiplicam, contratos que o amarram no longo prazo e preços que corroem o poder de compra. É uma forma moderna de insegurança existencial: a pessoa trabalha, mas não sente que controla sua vida financeira.
O crédito, muitas vezes oferecido com facilidade e poucas garantias aprofunda essa sensação. Parcelamentos longos antecipam uma vida de consumo que ainda não existe, mas comprometem a renda futura. O resultado é uma massa de trabalhadores empregados, porém endividados e sem margem para imprevistos.
O paradoxo brasileiro revela uma verdade incômoda: reduzir o desemprego não basta para melhorar a vida das famílias. É preciso olhar para a qualidade do trabalho, para a composição das despesas domésticas, para o custo dos serviços essenciais e para o modelo de crédito que estrutura o consumo nacional. Do contrário, continuaremos comemorando dados macroeconômicos enquanto a população segue contando moedas no fim do mês.
A economia pode estar indicando bonança, mas a vida real continua mostrando que, no Brasil, ter emprego não garante tranquilidade, apenas adia a conta que chega inevitavelmente no próximo boleto.
(*) JOÃO EDISOM DE SOUZA é Analista político e professor universitário.
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