Há pouco tempo eu conheci algo chamado ‘geografia das emoções’. Explicando de modo bronco, trata-se de um convite verdadeiramente cínico e subjetivo em reconhecer que os lugares e suas gentes moldam e são moldados pelas nossas vivências. É um terreno fértil, onde o simbolismo dos locais se interioriza e influencia a nossa rotina.
Um exemplo prático. Em 2003, a geógrafa Renata Suely Viana da Silva resolveu desenvolver uma tese sobre o impacto das chuvas no bairro do Curado, no Recife (PE). O trabalho explorou a experiência vivida pelos habitantes e como as transformações na paisagem física afetaram o bem-estar emocional dos moradores. Um cultivo de como emoções negativas surgem em resposta a eventos extremos.
Sim, eu sei que gente molhada e desabrigada fica triste. Mas como isso transforma vidas a longo prazo? Essa é a pergunta que os acadêmicos buscam responder.
Agora, traga essa tese para o seu dia a dia, para o seu caminho pacato de casa para o trabalho. Você, que se arrasta por esquinas de entulho, por obras que nunca terminam e por terrenos abandonados. Essa sinfonia de feiura e descaso impacta na sua produtividade profissional. Quando a alma se encolhe, a mente esvai-se. E o mesmo vale para a volta, quando você arrasta para dentro de casa toda a carga de frustração e desilusão que acumulou nesse trajeto.
É nesse mar de passionalidades, onde o simbolismo dos locais se entranha e corrompe o pensar e o existir, que a vinda de Liniker para Cuiabá, para o Baguncinha 2025, se ergue como um evento de uma importância que transcende o mero entretenimento. Estamos falando de um totem cravado no que muitos, com ares de grandiloquência provinciana, diriam ser o centro da América do Sul. Deixamos esses eufemismos regionais de lado.
Liniker em Mato Grosso é uma afronta necessária a quem despreza o humanitarismo e o afeto. Uma bofetada na cara da mediocridade reinante.
O ano é 2025 e o estado é Mato Grosso. O agronegócio, com sua brutalidade, não apenas dita as regras sociais, mas, com uma arrogância quase divina, tenta moldar até mesmo o que chamamos de cultura, de música, de valioso, de útil, de interessante. Neste cenário, onde grandes investidores e emendas priorizam um posicionamento político visando o lucro obsceno em detrimento de qualquer resquício de representatividade, a chegada de Liniker adquire contornos que beiram o absurdo. É um aceno para uma parcela da população que historicamente tem sido marginalizada e violentada.
De acordo com o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) de 2025, Mato Grosso é o décimo estado com o maior número de assassinatos de pessoas trans entre 2017 e 2024. Neste abismo, a presença de Liniker em um festival independente é mais do que um show, é um ato de coragem, um farol pálido de esperança para aqueles que terão pela primeira vez acesso à essa voz no quintal de casa.
O fato fica ainda mais interessante ao lembrar que o Baguncinha é um festival independente. Ir na contramão de um mercado cultural muitas vezes pasteurizado merece ser valorizado. Não se trata de romantizar a ausência de apoio público ou de grandes empresas, que é fundamental e deveria ser uma premissa, não uma exceção. Pelo contrário, é preciso cobrar que o sistema reconheça e invista em iniciativas que, como o Baguncinha hoje, o Vambora ontem e Calango antes de ontem, promovem a diversidade e o novo, em vez de apenas chancelar artistas que reforçam um status excludente e retrógrado.
É nesse olhar para dentro, nessa aposta arriscada que se manifesta na experiência coletiva de um festival como o Baguncinha, que reside a sua verdadeira, e talvez única, força. Enquanto outros eventos se afogam na efemeridade e na superficialidade das atrações que outrora foram relevantes no cenário, o Baguncinha se propõe a construir memórias e a ressignificar espaços em uma cidade onde a mesmice virou regra, não a exceção.
A vinda de Liniker, neste contexto, não é apenas a presença da maior cantora do Brasil da nova geração em um palco no concreto da Arena Pantanal. É a afirmação de que, mesmo em um estado dominado pela barbárie de um sistema anti-acolhedor e tendencioso, a arte e a diversidade podem transformar a paisagem emocional de um lugar. É a prova de que Cuiabá, apesar de tudo, ainda não desistiu de si, e que o Baguncinha, com sua irritante teimosa, pode ser o espelho que reflete a esperança de quem deseja fazer um trajeto pra casa menos cinza e mais promissor.
(*) FRED FAGUNDES é jornalista, ex-sub celebridade, autor de mais de mil gols na quadra do Canachuê e top10 blogueiros mais bonitos do Brasil na edição de agosto da revista Capricho de 2009.
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