Em março próximo completa 40 anos que a mais devastadora das enchentes já causadas pelo Rio Cuiabá na área metropolitana da capital dizimou vários bairros no trecho entre o atual Camelódromo e a Unic – o Terceiro, o Terceiro de Dentro e o Terceiro de Fora, Várzea Ana Poupino e Barcelos – e causou também estragos nas partes mais baixas de Morro do Tambor e do bairro Lagoa, que ficava do outro lado da Avenida 15 de Novembro, aonde as águas chegaram até a Igreja São Gonçalo.
Antes da inundação de 1974 foram registradas outras duas grandes enchentes causadas pelo Rio Cuiabá que afetaram a capital: as de 1942 e 1959. Mas nenhuma causou tantos problemas à população cuiabana como a de 1974, quando o nível do principal curso d’água que banha a capital chegou a 10,80 m, 20 cm a mais do que a de 1942.
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A consequência das cheias, agravadas pelo refluxo das águas de três riachos, hoje encobertos, que corriam a céu aberto no trecho inundado, incluindo o maior deles, o Boca do Valo, e que desaguavam no Rio Cuiabá, foi desastrosa: muitas casas, principalmente de adobe e pau a pique, foram destruídas, deixando cerca de cinco mil pessoas desabrigadas.
Lembra o radialista, professor universitário e administrador de empresas, já aposentado, e historiador William Gomes – que tinha familiares no Terceiro – que a enchente daquele ano teve dois aspectos dramáticos: primeiro foi o alojamento das vítimas na casa de parentes, escolas, igrejas, clubes, barracões, Estádio Presidente Dutra, instituições públicas, etc.; segundo, a demolição dos bairros, feita na força bruta, com a utilização da maquinaria pesada do extinto Departamento de Estrada de Rodagem de Mato Grosso – Dermat e aparato policial.
Nem bem as águas do Cuiabá baixaram e os moradores dos bairros começaram a tentar voltar aos seus lotes para limpar suas casas e reconstruir ou reformar o que havia restado delas, quando, dia 19 de março, foram pegos de surpresa pela ordem de despejo do Governo do Estado, sob o comando de José Maria Fontanillas Fragelli, que havia desapropriado em caráter de emergência a grande área abrangida pelos bairros afetados pelas cheias e que haviam surgido de invasões, algumas delas incentivadas por políticos.
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Quem já estava dentro de casa e relutava em sair por bem, antes que as máquinas do Dermat iniciassem a demolição, era retirado à força. Até o Exército foi mobilizado para participar do cerco a área para impedir o retorno da família aos seus imóveis.
Surpreendido pela decisão de Fragelli e preocupado com o problema social que a transferência de tantas famílias para outros locais fatalmente iria gerar, o então prefeito José Vilanova Torres, já falecido, tentou contornar a situação, mas não teve jeito: o governo não reconsiderou a decisão.
NEM CRIANÇAS FORAM POUPADAS PELA VIOLÊNCIA NO DESPEJO
Para impedir pela força o retorno dos moradores às suas casas, o Governo do Estado cercou a área, mobilizando as polícias Militar e Civil e até o temido DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), criado para investigar crimes de subversão e torturar presos políticos. No dia 23 de março, 11 dias após as águas invadirem os bairros, as máquinas do Dermat iniciaram a demolição de cerca de mil casas que a enchente havia deixado em pé.
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Moradores dos bairros atingidos pelo flagelo de 1974, entre eles o engenheiro civil Basílio Barbosa de Oliveira, presidente da Associação dos Ex-moradores e Descendentes do Antigo Terceiro – Andat recordam que foi montada uma verdadeira operação de guerra para retirada das famílias das áreas atingidas pelas enchentes.
Em seu livro “Cuiabá de outrora, testemunho ocular de uma época”, o historiador/escritor Lenine de Campos Póvoas registra sobre a remoção das famílias que o contingente militar usara “de barbárie contra crianças, adultos e pessoas idosas que tentaram permanecer em suas casas e levaram armas no peito como se fossem bandidos”. Até baionetas foram usadas na operação para retirada dos moradores – relata o autor do livro.
Para William Gomes, a população expulsa dos bairros destruídos pelas enchentes de 74 tinha razões de sobras para reagir contra o despejo. Embora fossem bairros bem carentes e cuja principal fonte de empregos eram uma grande cerâmica e várias olarias de pequeno porte, seus moradores formavam uma grande comunidade muito unida que se destacava pela organização social, que provocava inclusive ciumeira de outros aglomerados habitacionais da capital.
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As festas religiosas dos bairros que foram varridos do mapa de Cuiabá pela enchente daquele ano já eram uma tradição na cidade. Havia também cultos afro-brasileiros, com diversos terreiros espalhados pela área e cujo pai de santo mais famoso era Dandi, que inclusive virou nome de rua do Novo Terceiro, para onde foram levadas grande parte das famílias expulsas de suas casas, primeiro pelas águas do Rio Cuiabá e depois pelo Governo do Estado. Nos bairros viviam também muitos curandeiros e benzedores.
Dois cinemas – o São Luiz, do Lagoa, e o Bela, do Barcelos, de um migrante húngaro – dois bons times de futebol (Campinas e Riachuelo), um clube social, o Coração da Mocidade, cujo dono era Zé Maria, blocos de carnaval – o cordão Sempre Vivinha (Lagoa), de Nhôzinho, e o bloco Estrela Dalva, de dona Dalva, do Barcelos, eram outros orgulhos da comunidade. Corridas de cavalo onde está hoje a Acrimat e torneios de bochas também eram atrações para os moradores e visitantes.
No local chamado de Larguinho, no Barcelos, funcionava o Drink Bar, o “point” da época da turma da vida meio torta. As famílias preferiam freqüentar o Coração da Mocidade.
REGISTRO FOTOGRÁFICO DE UMA HISTÓRIA QUE ESTÁ DESAPARECENDO
Lamentavelmente, uma grande parte da história dos bairros que formavam a comunidade ribeirinha e da devastadora enchente de 1974 está desaparecendo. O registro foi feito pelo fotógrafo Celestino Eugênio de Moura, mais conhecido na área que concentrava aos bairros desaparecidos e que virou tudo Dom Aquino, como Tito Fotógrafo, atualmente com 82 anos, e um dos pioneiros da fotografia em Cuiabá.
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Acometido de alzheimer há alguns anos, Tito e sua família foram emprestando as fotos de seu acervo pessoal e que jamais foram devolvidas, restando apenas algumas da enchente de 74. Tito, que parou de andar em 2007, está levando vida vegetativa. Mas de vez em quando pronuncia alguma palavra audível. Na conversa do HiperNotícias com sua mulher Adenir Franco de Moura, 77 anos, quando o assunto era fotografia e foi mencionado o nome do lendário Chau, Tito, com muita dificuldade, conseguiu dizer: “Ele aprendeu comigo...”
Durante os oito dias – de 12 a 19 de março – que duraram a inundação dos bairros castigados pelas cheias do Rio Cuiabá, a casa do casal Tito Fotógrafo-Adenir de Moura e que fica na Rua Pimenta Bueno, já chegando à famosa “Pedra” de venda de automóveis, na Avenida Carmindo de Campos, praticamente se transformou numa enfermaria.
Naqueles dias terríveis da inundação, só podia ser utilizado um único meio de transporte nos bairros: a canoa a remo. E era para a casa de dona Adenir-Tito Fotógrafo que eram levadas as pessoas que precisavam de atendimento médico. Aposentada como enfermeira do Estado, eventualmente ela cuidava dos enfermos até que um carro de hospitais pudesse chegar, com muitas dificuldades por causa das águas, a sua casa para remover os enfermos.
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Casada há 60 anos com Tito Fotógrafo e de cuja união nasceram 5 filhos, 22 netos e 21 bisnetos – até agora... – dona Adenir, apesar das enchentes que enfrentou na região em que mora até hoje, tem muitas saudades do passado vivido na área antes da enchente de 74 dizimar vários bairros. Recorda inclusive de quando lavava roupa e tomava banho nas pedras chamadas 21 – aquelas que aparecem na estiagem perto da Ponte Velha, à jusante do Rio Cuiabá. O 21 refere-se a morte de 21 soldados por afogamento naquele local...
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Adao de Oliveira 19/02/2014
Morava perto do bar Drinks, ao lado ficava uma caieira, aos fundos ficava a oficina do Satiro, morava lá eu e minha familia.Jogava bola no campinho do larguinho, ao lado do desemboco da prainha.Certo dia fomos a missa e catequese, e quando voltamos um homem de se dizia do governo. Dê caminhão e policiais e tudo, nos mudou para o Colegio São Gonçalo(colegio dos Padres) onde lá ficamos.Quata Saudade daquele tempo, nunca esqueço daquele dia, 10 de julho , 03 dias depois do meu aniversário. Começo aí uma nova história, do passado , presente e futuro de mim e de meu filhos crescidos. A eles sempre conto essa história. Viva O TERCEIRO!!!
marilza bueno 17/02/2014
Sem esquecer que tinha o "Beco Sujo", ficava no Porto, minha tia Rosinha morava lá, cheguei de ir ver a água entrando na cozinha dela, a 15 de novembro ficou todo alagado, meus irmãos na época eram escoteiros, Elias, o amigo Maurício, juntamente com "Mestre Lotufo", ajudaram muitos moradores a sair de suas casas de canoa. William Gomes, amigo de infância, formado dentista em S.Paulo, foi locutor de rádio, morador do Bairro Goiabeiras. Tempo bom que não volta mais. Eu era feliz e não sabia. Bem que sou mais feliz hije por ter meus filhos e netos perto de mim, Graças a DEUS.
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