Vinicius de Moraes nasceu em 19 de outubro de 1913, no Rio de Janeiro, e atravessou o século XX como raros artistas conseguem: unindo alta poesia e canção popular, diplomacia e boemia, parcerias históricas e uma obra que segue viva na memória afetiva do país. O apelido “poetinha” — diminutivo que é, na verdade, superlativo de afeto — diz muito sobre sua capacidade de tornar grandes os temas simples e próximos, como o amor, a amizade, a praia, a cidade e o tempo.
Formado em Direito, cedo se aproximou da crítica literária e da diplomacia. Serviu no Itamaraty com passagens por Los Angeles, Paris, Roma (onde costumava realizar animados encontros na casa do escritor Sérgio Buarque de Holanda) e Montevidéu, até ser cassado pelo regime militar após o AI-5. Mas antes e depois disso, foi sobretudo um poeta que não se envergonhava de buscar a canção — e um compositor que nunca abandonou a ambição da poesia. Seus “Sonetos” — de fidelidade, de separação, de intimidade — consolidaram um modo brasileiro de lidar com a forma clássica, combinando rigor métrico e coloquialidade. Poemas como “O Operário em Construção” e “Pátria Minha” mostram a outra face do autor: a que dialoga com o trabalho, a cidade desigual e a ideia de Brasil.
Se a poesia lhe deu voz, a música lhe deu alcance. Em parceria com Tom Jobim, Vinicius ajudou a inaugurar a bossa nova: o álbum “Canção do Amor Demais” (1958), na voz de Elizeth Cardoso, já trazia “Chega de Saudade” e apontava uma nova dicção para a canção brasileira. Pouco depois, “Garota de Ipanema” faria o mundo cantar o Rio — com sua melodia solar e um lirismo que elevou o cotidiano à categoria de mito. Vieram ainda “Insensatez”, “A Felicidade”, “Samba de Uma Nota Só”, entre tantas; com Baden Powell, abriu a vereda dos afrosambas, em que a batida ancestral ganhou poesia sofisticada (“Berimbau”, “Canto de Ossanha”). E, nos anos 1970, ao lado de Toquinho, fez do violão companheiro de uma fase mais intimista, de rodas, palcos e afetos, com canções como “Tarde em Itapoã” e “Testamento”.
Dramaturgo, Vinicius escreveu “Orfeu da Conceição” (1956), transpondo o mito grego para a favela carioca; a peça inspirou o filme “Orfeu Negro”, vencedor da Palma de Ouro e do Oscar estrangeiro, prova de que sua imaginação lírica tinha vocação universal. Em tudo, perseguia uma ética estética: fazer do refinado algo acessível, sem perder densidade. Por isso transitou entre o soneto de biblioteca e o samba de bar, entre a embaixada e a mesa do botequim, com naturalidade desarmante.
A vida pessoal — muitas paixões, muitos casamentos, amizades legendárias, noites longas — alimentou a lenda do “poetinha”, mas não explica o fenômeno. O que o sustenta, ainda hoje, é a coerência interna de uma obra que reconhece o amor como experiência total, com suas grandezas e fragilidades; que celebra o corpo e a paisagem sem pudor barroco; que aceita a melancolia, mas não abdica da esperança. A voz que canta “eu sei que vou te amar” (letra entre as mais gravadas da música brasileira) é também a voz que, nos poemas, enfrenta o destino com doçura e lucidez.
No plano estético, Vinicius operou um gesto decisivo: dissolveu a fronteira rígida entre “erudito” e “popular”. Ao levar o soneto para a canção e o samba para a poesia, mostrou que a língua portuguesa, em sua variedade brasileira, podia tudo — o rigor clássico e o balanço; a reflexão e o devaneio; a metáfora rara e a fala da rua. No plano histórico, sua obra ajudou a dar ao Brasil uma imagem de si menos sisuda e mais verdadeira: sensual, musical, contraditória, mas capaz de beleza compartilhada.
Morto em 9 de julho de 1980, Vinicius continua contemporâneo. Segue nos livros, nas gravações, nos saraus domésticos, nas rodas de violão de estudantes e nas trilhas sonoras de amor. Se há um legado a celebrar neste 19 de outubro, é a fidelidade do “poetinha” àquilo que mais importa: fazer do sentimento linguagem, e da linguagem, comunhão. Vinicius ensinou que a vida vale o risco do verso e a alegria da canção — e que, quando o país se reconhece no espelho de sua música e de sua poesia, descobre de novo a possibilidade de ser maior que as suas crises. É por isso que ele não passa: porque a delicadeza, quando encontra forma, permanece. É imortal.
É por aí...
(*) GONÇALO ANTUNES DE BARROS NETO (SAÍTO) é da Academia Mato-Grossense de Letras (Cadeira 7) e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso - IHGMT.
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