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Artigos Segunda-feira, 03 de Novembro de 2025, 10:18 - A | A

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Segunda-feira, 03 de Novembro de 2025, 10h:18 - A | A

JOÃO EDISOM

O Rio de Janeiro e o banquete do ódio

Por que a sociedade se sacia com o sangue e a vingança

JOÃO EDISOM

A sociedade contemporânea parece viver um paradoxal apetite moral: quanto mais sangue, mais sensação de justiça. Quando operações policiais deixam dezenas de mortos, como a recente ação no Rio de Janeiro que vitimou mais de cento e vinte pessoas, parte da opinião pública reage não com horror, mas com alívio como se a morte fosse o único remédio para a insegurança. Surge, então, uma pergunta urgente: que sociedade é esta que se sente saciada com a morte e embriagada pela vingança?

A resposta, para além da política imediata, encontra raízes profundas na psicologia e na filosofia moral.

Segundo Sigmund Freud, em O Mal-Estar na Civilização, o homem carrega em si impulsos destrutivos o instinto de morte (Thanatos), que são controlados pela cultura e pela lei. Quando o Estado e a moral enfraquecem, esses impulsos emergem sob a forma de ódio coletivo. A sociedade, incapaz de lidar com sua própria frustração, projeta sobre o outro o criminoso, o pobre, o marginal o seu desejo inconsciente de punição e purificação. A morte do outro passa a ser vista como expiação simbólica dos males sociais.

Friedrich Nietzsche, em Genealogia da Moral, já denunciava essa perversão moral: a vingança travestida de justiça. Quando a sociedade substitui o ideal da vida pelo culto à punição, ela adoece espiritualmente. O “homem do ressentimento”, como descreve Nietzsche, é aquele que precisa do sofrimento alheio para se sentir moralmente superior. Assim, o prazer diante da dor do outro torna-se a forma mais perversa de afirmação do poder.

Do ponto de vista político, Thomas Hobbes lembrava que o Estado nasce justamente para conter a violência natural dos homens. Mas quando o próprio Estado se torna instrumento da violência desmedida, ele regressa à lógica da selva o homo homini lupus, o homem como lobo do homem. O Estado que mata indiscriminadamente sob o pretexto de segurança não é mais civilizador: é predador.

A psicologia social, por sua vez, explica esse fenômeno como um mecanismo de transferência da culpa coletiva. Quando uma comunidade, cansada da criminalidade e da corrupção, vê a morte de suspeitos como “limpeza”, está projetando para fora de si as próprias falhas do sistema: a omissão na educação, o abandono das periferias, a negligência com a infância. É mais fácil eliminar corpos do que curar almas.

Erich Fromm, em Anatomia da Destrutividade Humana, afirma que o ódio coletivo é uma forma de compensação para a impotência social. Povos desamparados, quando não encontram justiça e nem propósito, buscam um sentido substituto na destruição. A violência, nesse caso, não é solução, é catarse. E, como toda catarse inconsequente, não resolve nada: apenas alivia momentaneamente a culpa social, enquanto perpetua o ciclo da morte.

No caso das operações policiais no Rio de Janeiro, o Estado parece agir como um Leviatã cego, que destrói para mostrar força, mas não se pergunta o que fará com os órfãos, as viúvas e os sobreviventes. O que será das crianças que viram seus pais morrerem diante de suas casas? Quem cuidará dos que ficaram? Serão abandonados até crescerem e voltarem a ser alvos, quando o ciclo recomeçar?

O filósofo Hannah Arendt, ao refletir sobre a banalidade do mal, advertia que o verdadeiro perigo da violência está na sua normalização. Quando o horror se torna rotina, o mal deixa de chocar e passa a ser administrado como estatística. Vinte mortos, trinta mortos, cinquenta mortos... números que não têm rosto, nome, nem lágrimas.

Essa naturalização da morte é o que transforma a sociedade em cúmplice. A cada vez que alguém diz “bandido bom é bandido morto”, reafirma-se o direito de matar e se enfraquece o dever de compreender. O ódio, travestido de moralidade, substitui o amor ao próximo pela sede de vingança. E, como advertia Santo Agostinho, “a esperança tem duas filhas: a indignação e a coragem”. Sem indignação e sem coragem para transformar as estruturas que geram a violência, o Estado continuará matando e o povo continuará aplaudindo.

É preciso resgatar a dimensão humanista da política e da justiça. Nenhuma sociedade se constrói sobre cadáveres. Nenhum Estado é forte quando precisa derramar sangue para provar sua autoridade. A verdadeira força de um país está em proteger os vulneráveis, não em exterminá-los. O sangue dos mortos não redime; apenas denuncia o fracasso coletivo da civilização.

Que estejamos prontos para perguntar, não quantos morreram, mas quantos ainda morrerão se nada for feito. E que o Estado, em vez de fabricar órfãos e viúvas, aprenda a gerar cidadania, justiça e esperança únicas armas verdadeiramente capazes de derrotar o ódio e reconstruir a paz.


(*) JOÃO EDISOM DE SOUZA é Analista político e professor universitário.

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br

 

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