O Brasil encerra 2025 com um paradoxo que salta aos olhos. De um lado, a produção agrícola caminha para novo recorde: o IBGE projeta safra de 341,9 milhões de toneladas para 2025, 16,8% acima de 2024. É motivo de orgulho nacional e confirmação do lugar do país entre as grandes potências do agronegócio. De outro lado, cresce a fila no Judiciário: no segundo trimestre, os pedidos de recuperação judicial no agro avançaram 31,7% ante igual período de 2024 e somaram 565 solicitações, segundo a Serasa Experian. Colheita farta, mas balança financeira pressionada — eis o contraste que exige reflexão serena e retorno a princípios que sempre pautaram o crédito rural: previsibilidade, cumprimento de contratos e respeito às garantias.
Parte da explicação é econômica, sem mistério: preço não é sinônimo de margem. A oferta elevada aqui e lá fora comprime cotações; muitos produtores ainda carregam custos altos de insumos de ciclos recentes. Mas há um componente institucional que não pode ser varrido para debaixo do tapete: a banalização da recuperação judicial como “estratégia de planejamento patrimonial”. O instituto, concebido para a empresa em crise econômico-financeira real, vem sendo usado como atalho de negociação para reprecificar passivos às expensas de credores — mesmo quando a produção e os ativos indicam viabilidade. Esse desvio corrói o alicerce do financiamento do plantio, encarece o crédito e penaliza quem cumpre a palavra.
O padrão recente revela, ainda, um elo importante dessa engrenagem. Pela primeira vez desde o 4º trimestre de 2023, as empresas agrícolas superaram os produtores pessoas físicas em número de recuperações: foram 243 pedidos entre empresas agrícolas contra 220 de PF no 2º trimestre; as demais empresas ligadas ao agro registraram 102 solicitações no mesmo período. Esse corte de dados ilustra a relação em cadeia característica do setor: muitos pedidos de produtores pessoas físicas — pressionados por margens comprimidas e passivos imediatos — acabam servindo de gatilho para que empresas da cadeia (revendas, armazéns, processadoras) reavaliem risco e, em não poucas praças, ingressem com seus próprios pedidos, ampliando o efeito dominó.
O contágio é conhecido de quem vive o dia a dia do campo. Uma RJ no elo do produtor muda, de imediato, a régua de crédito do fornecedor de insumos; este encurta prazos, exige garantias adicionais, repassa prêmio de risco. O transportador sente; o armazém, idem; a indústria processadora aperta o caixa, a trading recalibra exposição. Em cadeia, um pedido puxa outro. O resultado? Liquidez estrangulada, custo financeiro em alta e mais incerteza exatamente quando a colheita pede fluidez para escoar.
É aqui que a tradição — aquela que nos trouxe até as safras recordes — indica o rumo. Contrato bom é contrato cumprido. Títulos e estruturas típicas do crédito rural — CPR, alienação fiduciária, travas bancárias e operações de barter — não são meros papéis, são o cimento da confiança. Quando o sistema sinaliza que garantias serão preservadas, a engrenagem volta a rodar. Decisões judiciais que protegem a arquitetura financeira do setor e desestimulam o uso oportunista da RJ como ferramenta de reprecificação generalizada cumprem papel pedagógico indispensável.
O que fazer, então? Nada de mirabolante. Primeiro, disciplina contratual: ampliar a transparência nas travas, garantir a exequibilidade das garantias coibindo seu esvaziamento artificial. Segundo, negociação fora do foro: alongamentos e repactuações privadas antes do vencimento, com mediação setorial quando necessário, são o caminho menos custoso socialmente e mais rápido para restabelecer fluxo. Terceiro, governança de risco: cooperativas, revendas e indústrias precisam diversificar carteiras e usar métricas objetivas de exposição por praça, por credor e por cultura. Quarto, e mais urgente, crivo rigoroso do Judiciário: separar o devedor inviável — que merece o amparo legal — daquele que apenas busca ganhar tempo (inclusive prolongando artificialmente o stay period), reconhecendo o papel dos administradores judiciais e do Ministério Público na depuração de abusos.
No fundo, estamos diante de um ativo imaterial que nenhuma colheitadeira colhe: confiança. Safra recorde não basta se o mercado passa a tratar contrato como sugestão e a recuperação judicial como atalho negocial. O Brasil do agro avançou quando manteve o pacto simples e antigo — palavra dada, garantia respeitada, crédito honrado — que sempre nos guiou. Resgatar esse pacto agora é condição para que a abundância do campo se traduza, de fato, em prosperidade sustentável ao longo de toda a cadeia.
(*) YURI NADAF BORGES é advogado, procurador do Estado de Mato Grosso, vice-presidente da Apromat, e membro da Comissão de Direito Tributário do IMAN.
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