Na década em que a irmandade Alcoólicos Anônimos – A. A. completa 90 anos, torna-se imperioso destacar o seu papel relevante na sociedade. O alcoolismo é uma doença incurável e cercada de preconceitos, no entanto, o processo de compartilhar experiências e apoiar essas ações contribui significativamente para preservar a sobriedade e transformar vidas.
Desde sua criação, por Freud, a psicanálise evidencia um olhar para o alcoolismo. Suas primeiras contribuições encontram-se em um texto de 1888, sobre Histeria. Trata-se de um texto pré-psicanalítico no qual o mestre faz algumas observações relacionando o alcoolismo à histeria, em geral, e à histeria masculina, em particular.
Em nossa experiência clínica constatamos a associação entre a embriaguez e a manifestação de sintomas de histeria, tais como, crises de choro, fugas, histeroepilepsia, blackouts, desmaios, súbita agressividade, paralisias, tremores generalizados, crises nervosas de uma forma geral.
Freud diz que muitas das anestesias alcoólicas não passam de um sintoma histérico. A anestesia é um queixa frequente nos alcoolistas. Ela expressa certo conteúdo inconsciente para o sujeito alcoolista, que pode ser investigado na subjetividade de cada um. Na clínica, evidenciamos casos em que os pacientes apresentam uma paralisia, não conseguindo se levantar da cama, após sua esposa ameaçá-lo de separação. Homens em idade juvenil são particularmente propensos à histeria em virtude do álcool. Hoje se diz que os jovens bebem muito, cada vez mais e mais cedo. Inúmeros debates interrogam o aumento de alcoolização entre os adolescentes, ou seja, os homens, cada vez mais jovens, se embebedam. Provavelmente, trata-se de uma relação do sujeito com a sua própria histeria. O alcoolismo na histeria masculina está relacionado à impotência para o trabalho. Freud afirma que a histeria masculina tem a aparência de uma doença grave, pois seus sintomas quase sempre são rebeldes ao tratamento e, nos homens, por implicar uma interrupção do trabalho.
Muitos problemas do alcoolista no trabalho podem se relacionar muito mais à sua natureza histérica do que ao alcoolismo propriamente. Num sintoma, tem-se o benefício primário e o benefício secundário com a doença. O benefício primário da fuga para a doença através do alcoolismo em virtude do mal estar do trabalho, a isto se soma a pensão recebida no caso de afastamento do trabalho, que é um exemplo típico de benefício secundário.
Encontramos três momentos na obra de Freud, em que ele faz referências ao delírio de ciúmes alcoólico: No “Rascunho H” 1895, Freud diz que o alcoolista não admite que sua impotência sexual seja decorrente do uso abusivo de álcool. Por não aceitar essa situação, passa a culpar a mulher, apresentando delírios de ciúmes.
Freud em 1900 na “A interpretação dos sonhos”, cita um sonho de um paciente alcoolista, que escuta vozes acusando sua esposa de infidelidade, considerando-o como equivalente a uma paranoia.
Em 1911, no Caso Schreber, Freud diz que o delírio de ciúmes alcoólico se refere a um desejo homossexual projetado na mulher, pois não é raro que o desapontamento com uma parceira leve um homem para o bar, mas isso significa que ele encontra, no bar, a satisfação emocional que perdeu da mesma em casa. Assim, se estes parceiros de copo passam a ser objeto de forte investimento libidinal em seu inconsciente, ele se defende dizendo que não é ele que os deseja e sim ela.Como a repetição se verifica no alcoolismo? Ela se verifica naquilo que chamamos de destino, ou seja, o que retorna sempre para o mesmo lugar, uma herança de um destino familiar. Pode-se também relacionar esta compulsão com a manifestação de desejos proibidos, experimentados por via oral.
Na “Carta 55” de 1899, Freud aborda o alcoolismo em sua relação com a oralidade, na qual descreve um caso de dipsomania em um homem de 50 anos, que havia seduzido um de seus pacientes histéricos. Esse homem começara a ter ataques de grave dipsomania a partir dos 50 anos, que se iniciavam ou com diarreia, ou com catarro e rouquidão.
A rouquidão e o catarro, Freud relaciona-os ao sistema sexual oral, como uma reprodução de suas experiências passivas. Freud observa ainda que um dos filhos deste homem também era alcoolista.Para concluir, é lembrada a reação do organismo à compulsão e à repetição, própria ao alcoolismo. As complicações clínicas tão frequentes no alcoolismo crônico podem levar à morte pelo consumo do corpo. Muitos autores dizem que o alcoolista para de beber quando atinge o fundo do poço. Além disso, quando a pessoa se embriaga excessivamente, em virtude do efeito depressor do álcool sobre o sistema nervoso, a tendência é que todos os órgãos parem de funcionar, levando ao óbito.
Antes que isso ocorra, há o “apagamento”, o desmaio na embriaguez, como uma defesa orgânica contra a morte. No texto “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, Freud (1912) compara a ligação entre um homem e uma mulher, com o vínculo que se estabelece entre o bebedor e o vinho. Neste caso, trata-se de um casamento feliz, pois o bebedor não precisa ficar mudando de bebida para obter satisfação. Pelo contrário, se sua relação com o vinho é cada vez mais harmoniosa, o bebedor é um amante satisfeito. E se pergunta: “Por que a relação do amante com seu objeto sexual será tão profundamente diferente?” Indagação que o leva a analisar os entraves nas relações com os objetos de amor, as muitas condições que precisam ser realizadas para se conseguir um pouco de satisfação; e, ademais, o mal estar constante em virtude das muitas renúncias que a civilização impõe à pulsão. Podemos dizer que a bebida alcoólica é um parceiro silencioso e conciliador, que não pede e não reclama nada, que não denuncia a castração no amor que o embriagado lhe confere.
Em “Os chistes e suas relações com o inconsciente”, Freud (1905) diz que o bem promovido pelo álcool é permitir ao homem a mudança de estado de espírito.
Em “O mal estar na civilização”, Freud (1930) apresenta sua mais extensa indicação, não sobre o alcoolismo propriamente, mas sobre a utilização de substâncias tóxicas. Ele está analisando as consequências nefastas inevitáveis da vida civilizada, já que a cultura impõe inibições importantes às satisfações pulsionais.
Assim, restritas suas possibilidades de gozo, a vida, tal como ela é, é árdua demais para o homem, trazendo muito sofrimento, decepções e tarefas impossíveis. Para lidar com o mal estar, o homem utiliza três modalidades de (medidas paliativas) construções auxiliares, quais sejam: derivativos poderosos, para extrair luz de sua desgraça, tais como a atividade científica; satisfações substitutivas, que reduzem o mal estar através das ilusões. Isso é eficaz em virtude da importância das fantasias para a atividade psíquica e, além de tudo, contrastam com a realidade externa, como é o exemplo da arte. Por fim, a terceira forma de construção auxiliar são as substâncias tóxicas que amortecem o sofrimento.
Assim, os métodos que buscam influenciar o organismo são os mais interessantes para evitar o sofrimento, sendo a intoxicação – o método químico – o mais eficaz deles, apesar de ser, também, o mais grosseiro. Isto se explica porque as substâncias tóxicas apresentam dois efeitos simultâneos: provocar sensações prazerosas e alterar nossa sensibilidade, de modo que os impulsos desagradáveis deixam de ser percebidos.
Outro aspecto de suma importância é o alto grau de independência do mundo externo, o qual permite ao sujeito se refugiar em um mundo próprio, afastando-se das pressões da realidade (Freud, 1929).
- Por que é tão difícil parar de beber, como se observa na clínica?De acordo com o pensamento freudiano, o beberrão crônico tem uma grande dificuldade de parar de beber porque uma decisão só consegue ser levada adiante se nascer de uma forte corrente da pulsão de vida, de Eros. E a decisão do alcoolista tem origem em um mandamento da instância super egoica, aquele mesmo que lhe determina, por injunção identificatória, que ele beba. O superego obriga o sujeito a beber e depois o pune e exige que o sujeito interrompa esse modo de gozo. Ele comanda a ingestão e depois provoca um sentimento de culpa por este ato e a culpa aumenta a cada novo e diário embebedar-se.
Por conseguinte, trata-se de um ato sem saída, para um sujeito que anda em círculos, enredado em um gozo além do princípio do prazer. E como o pai destes pacientes, em geral, também apresenta uma deficiência em seu projeto viril, não deixam como herança um limite apaziguador para este filho.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.1996.FREUD, S. (1905). Os chistes e suas relações com o inconsciente. in:.Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996FREUD, S. (1912). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. in:.Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996.FREUD, S. (1915). Recordar, Repetir e elaborar in:.Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996.FREUD, S. (1920). Alem do princípio do prazer. in:.Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996.FREUD, S. (1927). O ego e o id. in:. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996.FREUD, S. (1930). O mal estar na civilização. in:. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996.
(*) MARIA DE LOURDES TURBINO é mestre e doutora em Psicologia.
Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br
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