A Câmara dos Deputados do Brasil, instituição concebida para representar o povo brasileiro e traduzir em leis a vontade popular, há muito parece ter abandonado sua vocação republicana. O que se observa é uma progressiva transformação da casa legislativa em reduto de interesses privados, onde negócios obscuros, autoproteção de mandatos e a busca por privilégios imunes à punição se sobrepõem às reais demandas sociais.
Historicamente, a elite política brasileira nunca se colocou ao lado das maiorias. Desde o Império, quando o voto era restrito aos proprietários de terra, até a República Velha, dominada pelo coronelismo e pelas oligarquias, a exclusão do povo sempre foi uma constante. O que se vê hoje, em pleno século XXI, é apenas a continuidade dessa herança de desigualdade política: deputados que falam em nome do povo, mas legislam em causa própria.
A cada nova legislatura, a distância entre representantes e representados aumenta. Projetos que beneficiariam a educação, a saúde e a justiça social são frequentemente engavetados, enquanto medidas que ampliam verbas de gabinete, blindagens jurídicas e brechas para negócios privados recebem prioridade absoluta.
Um elemento ainda mais preocupante nesse cenário é a infiltração do crime organizado em instituições sociais e políticas. Grupos criminosos têm utilizado igrejas, associações comunitárias e até partidos como espaços de legitimação social, aproveitando-se da fé e da fragilidade das populações mais vulneráveis para consolidar poder, influenciar votos e construir redes de proteção que se estendem até os gabinetes de Brasília.
Essa infiltração, no entanto, não ocorre de maneira explícita. O crime organizado veste-se de moralismo: adota o discurso anticorrupção, ergue bandeiras conservadoras e proclama valores éticos que, na prática, não respeita. É uma tática perversa, pois cria uma narrativa de pureza para ocultar seus próprios pecados, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, violência e corrupção sistêmica. O discurso da virtude torna-se a máscara perfeita para a expansão de um projeto criminoso de poder.
Na política, essa presença se torna ainda mais evidente. O crime organizado investe em candidaturas, financia campanhas e, em troca, exige proteção e favorecimento. Com isso, parte do Parlamento deixa de ser apenas cúmplice de seus próprios privilégios e passa a ser engrenagem ativa de uma estrutura criminosa que corrói o Estado por dentro. Quando o poder legislativo se contamina por esses interesses, transforma-se não apenas em casta, mas em trincheira do crime travestido de legalidade.
Do ponto de vista filosófico, Platão, em A República, descreve a figura dos guardiões como aqueles que deveriam agir em nome da coletividade. Mas o que se vê na Câmara é uma perversão dessa ideia: em vez de guardiões da democracia, os deputados comportam-se como uma nova casta, a casta dos “deuses do Olimpo”.
Tal como os mitos gregos narram deuses distantes, egoístas e indiferentes às dores humanas, a Câmara parece cultivar a ideia de que seus membros pertencem a uma esfera superior, imune às regras da justiça comum. Quando lutam pela própria impunidade, transformam o Parlamento em uma fortaleza contra o povo, e não em sua trincheira.
Se a essência da democracia é a responsabilização, o que vemos é justamente o oposto: a criação de mecanismos de proteção contra qualquer tipo de julgamento ético ou jurídico. A busca pela imunidade parlamentar ilimitada e pela blindagem de mandatos transforma o cargo público em escudo contra a lei, desvirtuando completamente o princípio republicano de igualdade.
Do ponto de vista psicológico, esse comportamento reflete o narcisismo político: a incapacidade de reconhecer-se como servidor da coletividade e a tendência a confundir poder público com propriedade privada. É a transformação do mandato em patrimônio pessoal, e não em missão pública.
A médio e longo prazo, esse divórcio entre o Parlamento e a sociedade gera consequências devastadoras: o aumento do descrédito nas instituições, o fortalecimento do populismo autoritário e o risco de rupturas democráticas. Quando o povo percebe que seus representantes se transformaram em uma aristocracia intocável, abre-se espaço para que outsiders prometam varrer “os corruptos” a qualquer custo, muitas vezes substituindo apenas a roupagem, mas não o sistema de privilégios.
A Câmara dos Deputados, ao insistir em privilegiar seus próprios interesses e desprezar as necessidades populares, arrisca-se a perder a última réstia de legitimidade democrática que ainda possui. Ao agir como uma casta olímpica, distante e indiferente, cria um abismo entre Estado e sociedade.
É urgente recuperar a noção de que o poder emana do povo e deve a ele servir. Caso contrário, os deuses do Olimpo parlamentar continuarão a reinar sobre ruínas – e será o povo brasileiro, mais uma vez, quem pagará o preço.
(*) JOÃO EDISOM DE SOUZA é Analista político e professor universitário.
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