As coincidências não acabam aqui. Também a história de Mosquito - em cartaz na 44ª Mostra - é a de um soldado engajado na 1ª Guerra (1914-1918), o sangrento conflito que, para o historiador britânico Eric Hobsbawm, é o verdadeiro fecho do século 19. Em sua barbárie, encerra a belle époque europeia e dá início ao século 20, chamado por ele de "a era dos extremos".
Nesse ambiente, Zacarias (João Nunes Monteiro) é o rapaz de 17 anos que deseja aventurar-se numa guerra que julga romântica e alista-se no exército. Sonha combater em território francês, mas, como o soldado não é dono de si, é enviado para Moçambique, na África. Portugal manda tropas para defender sua então colônia de possíveis ataques alemães.
Zacarias apresenta-se e toma contato com o cotidiano duro de um soldado. Seu antagonista, mas talvez mentor, é o sargento Justino (João Lagarto), durão, cínico e cético, que irá reencontrar Zacarias apenas no final da história. E em circunstâncias nada convencionais.
O jovem soldado logo contrai malária e fica incapacitado para a luta. É deixado para trás por seu destacamento. Com a febre, vive entre a realidade e a alucinação. Esse registro - o da realidade incerta, do sonho desperto - será adotado no desenho narrativo da obra. Torna-se ainda mais evidente quando Zacarias for atravessar o país, sozinho, para buscar seu pelotão.
Ao longo desse percurso feito a pé, ainda doente, mal armado e mal ajambrado, Zacarias faz sua iniciação no continente africano. Então, temos a melhor parte desse "filme de guerra sem guerra". É quando o ainda adolescente vai encontrando pessoas e vilas em seu percurso, tentando se entender com gente que não fala seu idioma e da qual ele não compreende os costumes. Mosquito é, também, um filme sobre o amadurecimento em situações extremas. Sobre o processo de tornar-se adulto dessa quase criança que foi para a guerra movido por ideias românticas.
Ele descobrirá que pouco lirismo existe neste mundo e não apenas porque terá de enfrentar um sargento durão em seu primeiro contato com a vida militar. Fome, frio, calor, desejo sexual e uma inesperada amizade - com alguém que também não fala português - serão partes do percurso de amadurecimento de Zacarias.
Mosquito é um trabalho muito sofisticado do ponto de vista formal. Os diálogos são raros, quase inexistentes, até mesmo pela barreira de línguas que o protagonista encontra em seu caminho.
Desse modo, o diretor João Nunes Pinto aposta tudo na força das imagens, na ambientação tanto fascinante quanto amedrontadora da paisagem africana. E também no excelente trabalho do personagem, que envelhece ao mesmo tempo que amadurece. Uma transformação física em contato com o sofrimento que lembra a de outro garoto precocemente devastado pela guerra, o protagonista do grande épico Vá e Veja, do russo Elem Klimov.
Há muitas outras entradas possíveis para leitura desse filme ambíguo e encantador. Pode-se, por exemplo, ver na trajetória de Zacarias uma alusão à debilidade precoce de Portugal em terras africanas, bem antes das guerras de libertação colonial. É também um filme sobre a amizade e como esta pode nascer nas situações mais imprevistas. Fala da iniciação sexual numa condição de estranhamento que lembra muito algumas sequências de Satyricon, de Federico Fellini.
Enfim, pode-se devanear sobre esse filme surpreendente e muito rico de sentidos. E pensar que, no fundo dele, reside a absoluta falta de sentido da guerra, o sofrimento inútil já evocado em tantos filmes e outras tantas manifestações artísticas e também numa das obras-primas do mestre português Manoel de Oliveira, Non - A Vã Glória de Mandar.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
(Com Agência Estado)
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