O presente artigo busca analisar a questão relativa ao pedido feito pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE n. 1.537.165/SP, visando à suspensão de todos os processos penais em trâmite no país que discutem o acesso de órgãos de investigação a relatórios de inteligência financeira (RIFs) obtidos por encomenda.
Além do pedido de suspensão de todos os processos penais, o que chama a atenção e que será objeto do presente texto é o pedido, sem nenhuma base legal, de suspensão da “prescrição da pretensão punitiva nas ações que tenham identidade com o Tema n. 1.404”.
A necessidade de suspensão da pretensão punitiva do Estado, segundo argumentou a PGR, dar-se-ia para evitar “o cerceamento da atuação do Ministério Público visando à responsabilização pela prática de condutas ilícitas”. Essa postura, entretanto, além de não ter respaldo legal, parece querer alocar na Constituição Federal o inexistente “princípio da ampla acusação”.
A problemática toda está a ocorrer porque, a despeito de o STF ter supostamente delimitado a “possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário” no Tema 990, há diversas omissões no julgado.
Apenas para explicitar algumas das questões não respondidas pela Suprema Corte no Tema 990, citam-se as seguintes, trabalhadas por Francisco Codevila: “(1) se o compartilhamento do RIF deve ocorrer somente por iniciativa do Coaf (compartilhamento espontâneo) ou se os órgãos de persecução penal podem solicitar a transferência dos dados armazenados pelo Coaf ou requisitar a produção de RIF (compartilhamento a pedido). (2) caso seja possível a iniciativa do MP e da polícia, considerando a autonomia da UIF afirmada pela Recomendação 29 do GAFI, se o Coaf deve somente compartilhar as informações pré-existentes, já disponíveis em seu banco de dados, ou diligenciar no sentido de obter outras informações junto aos sujeitos obrigados; (3) em relação aos dados pré-existentes, uma vez que o Coaf tenha concluído não haver informação relevante, se estaria obrigado a compartilhá-los quando houvesse pedido do MP ou da polícia; (4) se as expressões para a instauração dos procedimentos cabíveis, contida no artigo 15, da Lei nº 9.613/98, e para fins criminais, constante do teor da tese fixada, contemplam a possibilidade de uso efetivo dos dados financeiros pessoais compartilhados para fins de persecução penal, independentemente de autorização judicial”.
Diante de tantas lacunas, houve muitas divergências quanto ao alcance do Tema 990, a causar grande divergência tanto entre as turmas do próprio STF, quanto entre o STF e o STJ.
Devido ao cenário nebuloso e conturbado, o STF reconheceu a repercussão geral do RE 1537165, “em que se discute, à luz dos artigos 5º; X; XII; XXXVI e 129; VI; VII; VIII; e IX, da Constituição Federal, as seguintes hipóteses: (i) saber se o Ministério Público pode requisitar dados às autoridades fiscais, sem autorização judicial; e (ii) saber se o compartilhamento de dados fiscais pressupõe instauração de procedimento de investigação penal formal” e fixou o Tema 1404, com o enunciado “Provas obtidas pelo Ministério Público por requisição de relatórios de inteligência financeira ou de procedimentos fiscalizatórios da Receita, sem autorização judicial e/ou sem a prévia instauração de procedimento de investigação formal”.
A controvérsia, como se nota, se dá por diversas vertentes, de modo que cabe, de fato e de direito, à Suprema Corte decidir e delimitar o alcance e a forma do citado compartilhamento.
O que não se afigura coerente, no entanto, é “repassar” ao cidadão processado criminalmente o custo temporal, psicológico, reputacional e patrimonial, deixando o próprio Estado decidir, sem qualquer obediência aos marcos legalmente estabelecidos e sem qualquer possibilidade de sanção decorrente dessa (de)mora, como (?) e quando(?) a matéria será julgada.
O processo, como já advertia Carnelutti, é uma pena em si mesmo, e a sua razoável duração (art. 5º, LXXVIII, CF) constitui direito fundamental que não pode ser anulado por mero utilitarismo, em prol da acusação e contra a defesa, para evitar “o cerceamento da atuação do Ministério Público”.
Como já se trabalhou em outra oportunidade, “a legitimação do Estado para exercer o direito de punir não autoriza que a atividade jurisdicional se prolongue demasiadamente” , justo porque “o tempo excessivo de duração do processo é aviltante para o acusado na medida em que produz a estigmatização e a degradação de sua identidade pelos traumas sociais e psicológicos causados pela persecução penal – principalmente se for submetido a medidas cautelares”.
No âmbito do direito penal econômico, a propósito, a (de)mora na persecução penal pode levar à “morte civil” do cidadão, o qual se vê, em muitos casos, praticamente alijado das atividades empresariais, em razão da crescente e questionável implementação de sistemas de compliance, os quais acabam por aniquilar, por exemplo, com o também constitucional princípio da presunção de inocência.
Nesse cenário, se o próprio Estado tem dificuldade de interpretar a legislação que ele próprio criou, é completamente ilógico e inconstitucional suspender o prazo prescricional para que esse mesmo Estado diga, com a calma que quiser, sem qualquer consequência sancionatória relativa à sua demora, de que forma se deve interpretar a legislação pátria.
Com efeito, se a prescrição – matéria de conteúdo constitucional e de expressa previsão legal – funciona “como uma espécie de pena imposta ao Estado em razão da inércia no exercício do poder punitivo” , não faz o mínimo sentido que esse Estado inerte suspenda o prazo previsto em lei para livrar-se a si mesmo da consequência sancionatória de sua inação.
A suspensão de processos penais e, com ela, do prazo prescricional é atividade que viola frontalmente o princípio da legalidade, porquanto estabelece causas suspensivas inexistentes no plano legislado, com base em fundamentos meramente utilitaristas, escolhidos ao livre talante do Poder Judiciário, em completo descompasso com a legislação vigente.
Além de violadora do princípio da legalidade, tal postura revela inegável afronta à separação de poderes e à razoável duração do processo, notadamente porque se trata de providência requerida pelo órgão maior da acusação, com reflexos não previstos em lei e direcionados exclusivamente aos cidadãos processados, que não deram causa nem à divergência jurisprudencial, nem à suspensão processual.
Por essa razão, conquanto a suspensão dos processos seja possível na hipótese de reconhecimento da repercussão geral da matéria (art. 1.035, § 5º, do CPC), o mesmo não ocorre com a suspensão do prazo prescricional (art. 116 do CP), que constitui instituto com repercussão penal material e em relação ao qual deve ser sempre respeitado o princípio da legalidade.
(*) FILLIPE MAIA BROETO é advogado criminalista e professor de Direito Penal Econômico em nível de pós-graduação. Doutorando em Direito Penal pela Universidade de Salamanca, na Espanha, é também mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Internacional de La Rioja, Espanha, mestre em Direito Penal Econômico e da Empresa pela Universidade Carlos III de Madri, na Espanha, e especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, além de autor de livros e artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior.
(*) GIOVANE SANTIN é advogado criminalista, doutor em Ciências Sociais pela Unisinos, mestre em Ciências Criminais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso, Vice-Presidente da OAB/MT e autor de livros e artigos jurídicos.
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