Euzébio sempre acordava antes da luz. O sol ainda dormia entre as árvores tortas do cerrado quando ele já lavava o rosto com a água fria do pote de barro. O cheiro do mato molhado entrava pela fresta da janela, misturado ao ranço da lenha que ainda fumegava no fogão de chão. Era assim desde menino — o corpo aprendendo o relógio do rio antes mesmo de aprender a ler.
Na parede, um quadro desbotado de Nossa Senhora do Pantanal vigiava a sala simples, com móveis que pareciam ter nascido junto com a casa. A mãe, Dona Maria, costurava na luz de lamparina desde a noite anterior. A irmã, Ana, arrumava os bolos para a feira de sábado em Santo Antônio do Leverger. Euzébio, calado, pendurava no ombro a tarrafa de rede remendada com sisal e promessa. Não se queixava. Não sabia.
A casa deles era conhecida na vila como a última da margem, onde o mato cresce mais grosso e o barro agarra o pé como quem não quer deixar ninguém partir. Ali nasceu Euzébio. E ali ficou. Primogênito de oito filhos, era o único que permanecera. Dos outros irmãos, seis homens foram embora ainda novos: Damião, Batista, José Mauro, Valter, Otávio e Bento. Primeiro para Barão de Melgaço, depois para Cuiabá, sempre com sacrifício dele e da mãe. A única filha mulher, Ana, decidiu ficar. Talvez porque fosse mulher, talvez porque entendesse o que os outros nunca quiseram enxergar.
O pai, Manoel, foi embora para o outro mundo como viveu neste: aos gritos, com cheiro de pinga no hálito e de raiva nos olhos. Morreu sem pedir perdão a ninguém. O fígado se despedaçou antes que o orgulho lhe desse paz. Foi Euzébio quem enterrou, com as próprias mãos e um caixão emprestado da funerária da vila.
Nos velórios dos vizinhos, os irmãos voltavam com seus carros pretos e roupas alinhadas. Para o enterro do pai, ninguém veio. Nem uma flor, nem um bilhete. Para a mãe, muito menos. A última carta que Maria escreveu (redes sociais eram de novos tempos) foi devolvida pelo correio com carimbo de destinatário desconhecido.
Euzébio nunca chorou por isso. Ou, se chorou, o rio levou.
Na beira do Rio Cuiabá, ele pescava como quem reza. Jogava a rede, esperava. O tempo ali não era o mesmo do mundo moderno. O tempo de Euzébio era o da maré, do canto das aves, do retorno ou não do peixe. Quando pegava um dourado graúdo, dividia com a mãe e com Ana. O que sobrava, vendia na feira. Era assim que ainda pagava o gás, o remédio de pressão da mãe e a lona que cobria o telhado que insistia em pingar.
Maria, a mãe, era fé encarnada. Costurava vestidos de noiva, fardas escolares, batinas de padres e capas de violas. Costurava com a linha firme da esperança que nunca arrebenta.
— Um dia eles voltam, Zébio. Deus é testemunha do que você fez por eles — dizia ela, com o olhar perdido entre o bastidor e a parede. Mas o tempo não voltava. E os filhos, muito menos.
Ana, agora com 44 anos, trazia no rosto o mesmo formato de Maria. A coluna doía, mas ela ainda insistia em caminhar até a vila para vender bolos de milho, pães de queijo e cocadas. Conhecia pelo nome todos os netos que não tinha. Fazia doce para batizado, crisma e enterro. Um dia disse: - Sabe, Zébio... acho que o amor é que nem tatu-peba, corre quando se aproxima demais.
Euzébio riu pela primeira vez em semanas. Um riso curto, miúdo, mas verdadeiro.
Quando Maria morreu, Euzébio vendeu a canoa velha que herdara do pai para pagar o caixão. Pediu emprestada a cruz, lavou o corpo da mãe com as mãos que ela mesma criara; e acendeu as três velas que restavam na casa. Nenhum irmão apareceu. Nenhum telefonema. Nem no enterro, nem depois. Na noite do sepultamento, Ana perguntou: — Você não sente raiva?
— Sinto não, Ana. Quem vive no rio aprende: tem peixe que some e não volta mais. Mas o rio segue correndo. Ela não respondeu. Apenas chorou em silêncio, enquanto a noite engolia as margens da memória.
Euzébio, Ana e a lembrança de Maria continuaram ali, entre o barulho das cigarras e o cheiro de peixe fresco. A vida seguia sua lida. Ele ainda jogava tarrafa toda manhã. Ela ainda batia bolo com dor nas costas. E ambos sabiam que o mundo lá fora havia esquecido deles. Mas ali, no pedaço de terra entre o capim e o céu, morava uma dignidade que nem os doutores entenderiam.
Esse era o silêncio do rio. Euzébio ouvia. Os irmãos, não.
(*) GONÇALO ANTUNES DE BARROS NETO (Saíto) é da Academia Mato-Grossense de Letras e do IHGMT (Email: [email protected]).
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