É muito conhecida, e foi muito mais repetida que nos tempos atuais, a frase atribuída ao comunista argentino Ernesto de la Serna, que indica como forma correta ou adequada para o modo de ser e proceder dos revolucionários, saber equilibrar a força com a sensibilidade, coragem com ternura, a firmeza das ações com doçura; resumidamente, como se vê em velhos cartazes amarelados e puídas camisetas da luta estudantil e dos movimentos sindicais e populares de décadas passadas: “Hay que endurecerse sin perder la ternura...”. Equilíbrio difícil, como muito bem sabe os que já estiveram nas turbulências da Luta e nos enfrentamentos diversos ao poder hegemônico, notadamente quando tiveram que confrontar a sua violência bruta, em desespero para preservar o seu status quo – os que conseguiram essa serenidade, destacam-se superiormente...
Tomo a frase, incrustada na imagem icônica do revolucionário Che, que se afigurou por muito tempo como um mantra para os militantes de outrora, para ilustrar, num gracejo, uma passagem da luta sindical dos anos de 1990. Sim, defendendo que, na agonia de um confronto desigual, às vezes, só resta rir – porque, rindo, pode-se desconcertar o adversário, recuperar o controle dos nervos e se impor, vitorioso, à sisudez da perversidade...
Na transição do governo do emedebista Carlos Bezerra para o do pefelista Jaime Campos, Mato Grosso e o Brasil viviam uma realidade marcada, por um lado, pela esperança na construção de um novo futuro, democrático-popular, como continuidade da luta que impôs o fim da Ditadura Militar; por outro lado, pela hiperinflação herdada da Ditadura que, em março de 1990, chegou a 84% no mês. Os salários se desvalorizavam a cada hora, sob o matraquear das maquinhas de remarcar preços nos supermercados; com efeito, pipocavam greves de diversas categorias, inclusive e amiúde nos Serviços Públicos, notadamente na Educação – e em todas as regiões do País, como se viu em Mato Grosso. Era um tempo em que o Agronegócio ainda engatinhava, mas, obviamente, assentado na estrutura latifundiária que o caracteriza, estabelecida desde as Capitanias Hereditárias...
No Governo do MDB, é preciso destacar, a Educação Básica teve os maiores avanços da história educacional mato-grossense, à vista da sua finalidade fundamental – considerando inclusive, a desgraceira vivida nos dias atuais. Mas, foi nesse governo, o período em que mais se fez greve na Rede Estadual de Ensino. Será coincidência, greve e avanços educacionais? Assim, terminado o processo eleitoral e aproximando-se a data da posse do novo governo, havia um problema institucional, decorrente da greve em curso dos Trabalhadores da Educação: a Assembleia Legislativa estava ocupada pelos Educadores, que haviam acampado em suas dependências; portanto, estava inviabilizada para realizar ali, a solenidade de Posse do novo governo.
Diversas reuniões foram realizadas entre os governantes que saíam e que entravam, e os Educadores, no sentido de parar a greve e, principalmente, desocupar as dependências da “Casa de Leis”; por seu turno, os Educadores condicionavam o fim da greve e da ocupação ao atendimento às suas reivindicações. O que não sabiam, os governantes, é que, exaustos, os Educadores queriam, pelo menos, que o novo governo se comprometesse em seguir com as negociações, mediante a apresentação de um calendário de reuniões etc. Mas, o governo entrante estava se sentindo muito poderoso, sem oposição entre os deputados estaduais, de forma a se colocar numa posição de confronto aos Educadores e ao Movimento Sindical em geral. Mas, a ocupação da Assembleia era muito desgastante para deputados e governo; então, às vésperas da Posse, já estabelecida a impossibilidade de a Posse ocorrer na Assembleia, ouve uma reunião em que os representantes do novo governo se comprometeram em continuar as negociações. O Comando da Greve e o Conselho de Representantes dos Educadores aceitaram encerrar o movimento, não porque acreditassem na posição ou compromisso do governo, mas porque arrefecia a mobilização e tinham muita dificuldade para continuar a greve...
As reivindicações dos Educadores, resumidamente, consistiam na preservação das conquistas que tinham inscritas na nova Constituição Estadual: Gestão Democrática, com eleição dos Diretores das Escolas e Conselhos Deliberativos Escolares; Piso Salarial, com base no Salário Mínimo do DIEESE; Hora Atividade, na proporção de 50% da jornada de trabalho dos Professores e Professoras – além de outras questões menores. Embora o Vice-Governador fosse um Professor conhecidíssimo da categoria, presente em muitas das suas lutas, especialmente como parlamentar, a categoria não confiava no novo governo, de modo que a greve se configurava profilática. De fato, suas desconfianças e temores se confirmaram logo depois da Posse – mas, isso é assunto para outro momento...
Na reunião em que ficou aprovado levantar o acampamento da Assembleia Legislativa, os Educadores decidiram fazer uma manifestação na Posse, que, dada a situação, ocorreria nas dependências do Palácio Paiaguás. Na Posse havia uma quantidade razoável de populares, talvez mais policiais, e estavam presentes também os Trabalhadores da Educação com cartazes, faixas e camisetas, afirmando suas conquistas, reivindicações etc. A manifestação dos Educadores na Posse, destoando do Ato solene, irritou os governantes, especialmente o Vice-Governador, pois, desbrilhava a festa; afinal, para os vencedores de uma eleição, a Posse é um momento-ápice, de regozijo, de exibir-se para os seus como vencedores etc.
Assim, um grande aparato de segurança foi montado, inédito pela quantidade de agentes e pela forma da organização e comportamento. Formou-se um grupo de policiais à paisana, sem identificação, vestidos de camisetas pretas e calça jeans, que se posicionaram atrás da fila de policiais fardados e armados, de maneira a impedir os Educadores de irem além dos limites que estabeleceram. Criou-se um clima de muita tensão, tal que, em dado momento, desencadeou-se uma confusão entre policiais fardados e apaisana contra os Professores e Professoras: pancadaria e violência como nunca ocorrera antes. Os policiais fardados criaram uma barreira de proteção, que abriam para os policias à paisana atacarem com punhos, pontapés, cassetetes e instrumentos perfurocortantes os Educadores; depois que atacavam, recolhiam-se atrás daquela barreira, deixando as marcas da sua violência nos manifestantes. Assim, o Professor Edson teve suas constas furadas que, sangrando bastante e manchando as roupas dos demais, preocupou a todos; outros foram esbofeteados, chutados – houve também uns companheiros que estavam ali para nos apoiar, tidos como bravos e radicais, que, quando o “pau cantou”, saíram em debandada no rumo do Restaurante dos Servidores...
Na tentativa de arrefecer os ânimos, porque não tínhamos a menor chance de vencer aquele embate, e não era nosso objetivo confrontar policiais armados, fui na direção do policial fardado que parecia ser o comandante da operação, para estabelecer um diálogo apaziguador; quando cheguei perto que quis conversar, saiu detrás dele um dos à paisana com um revólver em punho, apontado para meu rosto: virei-lhe as costas e ele desferiu uma coronhada em mim, senti o impacto, mas, interessante, ali a gente não sente dor. Lembro, entretanto, os olhares e gestos dos policiais: eram de muito ódio, como se lhes fôssemos seus maiores inimigos – quem lhes tinham injetado aquele sentimento de ódio e vingança, contra quem nenhum mal lhes fizera?
Na confusão, uns quatro policiais à paisana pegaram o Professor Serafim pelo pescoço e tentavam arrastá-lo para longe do grupo de manifestantes, no sentido das dependências do Palácio Paiaguás. Vendo aquilo, alguém do nosso pessoal gritou: “Eles estão levando o Serafim! Segurem o Serafim!”, então, vários Educadores seguraram o Serafim pelas pernas, tentando toma-lo dos policiais, ao tempo em que estes o arrastavam pelo pescoço; assim, o coitado do Serafim ficou sem conseguir respirar, sendo estrangulado pelos dois grupos, que o puxavam em sentidos opostos – aí alguém gritou: “o Serafim tá morrendo!”. Quando me virei para aquele lado e vi a situação, gritei pro nosso pessoal: “Solta o Serafim, companheiros!”, nosso pessoal soltou-lhe as pernas e os policiais o levaram arrastado para as dependências do Palácio. Aí, gritamos para a Serys (que já era deputada e estava conosco) para que fosse atrás dele, os policiais quiseram impedi-la, mas acabaram cedendo e ela foi em socorro do Serafim acompanhada do Professor Clóvis. Algum tempo depois, ela e Clóvis voltaram com o Serafim muito machucado...
A situação foi-se acalmando, com a Posse caminhando pro seu final; os populares se retirando, alguns se aproximando da gente, tentando entender o que havia acontecido, perguntando, preocupados com o sangue nas roupas de alguns Professores. Começamos a nos retirar com dois destinos: os que haviam sido feridos seguiram ao Pronto Socorro para fazer exame de corpo de delito; os demais para a Assemblei Legislativa, para retirarem os aparatos todos utilizados na ocupação e acampamento. Então, com o alívio de nada mais grave ter acontecido, o Professor João Monlevade (que nunca foi capaz de praticar violência contra qualquer ser vivo, por quem tínhamos e temos a maior amorosidade), segurando o próprio braço atingido violentamente pelo cassetete de um policial, aproximou-se de um grupo em que eu estava e disse-nos dolorido e incrédulo: “Eu nunca apanhei, nem do meu pai...”; gaiato, aliviado com o fim da confusão, disse-lhe: “João, nunca é tarde para a primeira peia!” Foi risada da turma toda; porque também rimos, não de alegria, mas para não nos enfraquecermos mais, diante do que a dor quer nos impor...
(*) ELISMAR BEZERRA DE ARRUDA é professor doutor das redes municipal de Cuiabá e da estadual de Mato Grosso. Foi presidente fundador do Sintep e Secretário de Cultura de Mato Grosso.
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