O art. 19, 5º da Lei Maria da Penha estabelece que as medidas protetivas de urgência podem ser concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.
A intenção do legislador foi clara: garantir celeridade e autonomia às medidas protetivas, afastando a dependência de formalidades que atrasam a proteção de mulheres em risco. Mas o que se observa no Brasil, especialmente em Mato Grosso, é um descompasso entre a lei e a realidade prática.
1. A estatística e o BO
No sistema de segurança pública brasileiro, o boletim de ocorrência (BO) ainda é a unidade de medida estatística. É a partir dele que se quantificam feminicídios, lesões corporais, ameaças, bem como o número de medidas protetivas requeridas pela via policial.
Em 2024, segundo o CNJ, foram cerca de 582 mil medidas protetivas concedidas em todo o país, dentro de um universo de mais de 830 mil movimentos processuais relativos a pedidos de proteção. Já o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) registrou mais de 630 mil solicitações, com 555 mil concessões (88%) e 101 mil descumprimentos, além de mais de 1 milhão de chamadas ao 190 relacionadas à violência doméstica.
Os dados mostram uma dissonância: enquanto o Judiciário computa o que chega aos tribunais, a Segurança Pública conta o que nasce do boletim de ocorrência. Assim, quando a lei dispensa o BO, mas o sistema policial continua exigindo-o, perde-se coerência estatística e, mais grave, tempo de resposta à vítima.
2. A peregrinação da vítima e a necessidade de inovação
Na prática, em Mato Grosso, uma mulher que busca medida protetiva precisa obrigatoriamente registrar um boletim de ocorrência, ainda que a lei não o exija. Esse caminho a obriga a recontar os fatos diversas vezes: no BO, no FONAR e na oitiva formal.
O FONAR, entretanto, é a ferramenta mais completa desse processo. Ele é obrigatório para Polícia Civil, Ministério Público e Judiciário, e reúne não apenas dados objetivos (tempo de relacionamento, filhos, histórico de ameaças), mas também uma parte subjetiva, em que o profissional habilitado avalia os riscos a partir da fala da vítima.
O problema é que, na prática, o FONAR nem sempre é aplicado de forma integral: em algumas unidades, a mulher responde apenas a parte objetiva, sozinha, sem apoio técnico. Isso enfraquece a análise e aumenta a revitimização.
Proposição
É preciso transformar o FONAR em núcleo integrador do fluxo de atendimento. Com tecnologia adequada — seja aplicativo ou programa de gestão —, as respostas dadas pela vítima e mediadas por profissional treinado poderiam gerar automaticamente um resumo estruturado da oitiva e, a partir daí, alimentar o boletim de ocorrência.
Assim:
- O BO continuaria existindo como documento-base das estatísticas de segurança pública;
- A vítima não precisaria repetir três vezes a mesma história;
- As informações colhidas no FONAR seriam mais ricas e consistentes, preservando contexto e histórico;
- O sistema de justiça teria dados mais completos para fundamentar a decisão judicial.
Mais do que burocracia, o que se propõe é eficiência humanizada: se o FONAR já é obrigatório, ele deve ser usado como fonte central de informação, integrando a narrativa da vítima, a estatística policial e a decisão judicial.
3. Entre o que a lei garante e o que o sistema exige
O §5º do art. 19 afastou a exigência de boletim de ocorrência para o pedido de medida protetiva. Porém, no sistema de segurança pública, a prática continua a vincular o pedido ao BO, seja presencial ou virtual. Mesmo quando o pedido é feito pela via digital, ainda assim o registro de ocorrência é obrigatório, e crimes que deixam vestígios não podem ser registrados online.
Portanto, a lei e a prática não dialogam: o Judiciário avança na contagem e concessão, mas a Segurança Pública permanece presa ao BO como documento-base.
Conclusão
A lei aponta para um caminho correto: medidas protetivas céleres, independentes de burocracia excessiva. O que falta é o sistema acompanhar esse avanço.
Enquanto isso não acontecer, continuaremos a ver mulheres peregrinando entre delegacias, defensorias e tribunais, repetindo suas histórias de dor, e estatísticas que não conversam entre si.
A violência doméstica não pode esperar. A lei já disse isso. Cabe às instituições tornar essa promessa realidade.
(*) Dra. JANNIRA LARANJEIRA é Delegada de Polícia Civil em Mato Grosso há 12 anos. Especialista em Direito Público, Gestão em Segurança Pública e Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Docente do Ministério da Justiça e palestrante nacional. Atuou na Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (2 anos) e na Delegacia da Mulher (4 anos). Idealizadora do Movimento VOZ e embaixadora do Projeto Amarra Cabelos.
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Podcastrocast 01/10/2025
Excelente matéria! Tenho acompanhado o belo trabalho VOLUNTÁRIO de conscientização da Delegada Jannira em nosso estado
1 comentários