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Artigos Segunda-feira, 29 de Setembro de 2025, 09:40 - A | A

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Segunda-feira, 29 de Setembro de 2025, 09h:40 - A | A

ELISMAR BEZERRA

À mesa, um não: o outro devir de Amália

ELISMAR BEZERRA

De entender o que se alevanta ante o olhar perquiridor, é que se qualifica o viver; e assim se vai, em tentativas sem fim de aliviar as ignorâncias para uma maciez maior no cotidiano, feito de dias cheios de trabalho e pouco descanso. No caminhar carregado de laços, o ser vai se desnovelando por jeitos e tempos brutos, às vezes, e, noutras horas, nem tanto assim, e, mais raramente, esmerado em refinos – de modo que, neste feitio breve, parece que é só pra fazer brotar beleza nas feiuras doridas de tantas precisões e ais. É de se dizer, então, que a vida do jeito da maioria viver, é um doer matizada de alívios...

Reparado bem, vai-se assim sabendo, não sabendo, e, por precisar saber, a perguntar sem entender direito a resposta e respondendo sem se demorar no entendimento da pergunta difícil; pois, o viver é o saber que se tece nele e dele à moda da aranha, cuja rede de caça é o próprio corpo estendido numa tecitura de nós e vãos, onde se prende vidas, de que se alimenta. Aí, disse-se Amália, perguntando para quem ouvisse e achasse que era pra ele, pra ela, pro mundo, sabe-se lá: “Além do aplacar as necessidades e desejos naturais, diários (a fome em primeiro lugar, porque saco vazio não se segura em pé), o viver é o quê?”; de resposta, houve silêncio bom e misterioso, reverberando eco no sem-fim da imaginação...

Viver é bom, melhor coisa não existe; se existe, é pra lá de depois do próprio viver – e como ninguém conhece isso, de ter ido ver, melhor é cuidar do que está dado...

Cada um é que sente a própria fome, as vontades, os desejos e as fraquezas; então, é tangido por isso que se dá a sonhar, confrontando-se na própria realidade: seja pra aliviar as precisões insaciadas, seja pra antegozar-se numa satisfação sem amparo pra ser. Precisão demais, sem termo, endoidece. O real, a realidade formada pelas vivências no correr dos anos, cria o ambiente com jeito próprio, conhecido pelo cheiro, pelas cores, pelo sons e pensamentos – ali se conforma, mais que o corpo, a Alma inquieta, para tudo ser normalidade. A normalidade é o aprisionamento de tudo num jeito de ser e viver, para vivificar a normalidade desde as suas partes mais pequititinhas; é essa tessitura quase mágica, que vai horizontalizando todo o jeito da gente ser, num mesmo olhar. Aí, cada um é, de jeito a não ser igual, mas, também, não ser desigualmente demais; aconchegando-se nessa ajeitação, pra não dar falatório, num amansamento dos olhos e dos olhares conformados na antiga ambiência – para desaceitarem como horizonte, o que se inventou amorosamente na madrugadinha do dia nascente. A normalidade é tempo e lugar onde descansa o espírito sobre o corpo lacerado e em aflições infernais, e se celebra a preguiça que não deixa reunir disposição para a reinvenção do viver diário; é o não desassossegar, o não mundanizar, o que está santificado!

Amália era moça quieta, conformada no rigor amoroso do pai e da mãe, herdado de avós; os dois formados, com conhecimentos de bons anos de escola. Quando falava, com seu jeito manso, calmoso, criava atmosfera de chuva leve em manhãs de domingo, de o tempo ficar bom, de ajuntar gente no arredor de si sem vontade de se ir, e ficar ali se rindo de dentro pra fora, quase besta de tanta leveza. Jeito vivaz, de pensamentos feitos de silêncios longos, num feitio serenoso, leveza do bater de asas de libélulas, querendo ser bom também. Amália falava com a alegria de quem solfeja cantiga-de-roda, com estilo e profundidades de livro e jornal, palavras de pouco uso no falar dos simples – mas, no seu dizer bonito, as significâncias eram intuídas até pelos mais desinstruídos, de jeito que todos se sentiam sabidos, também. Era cuidada pra ser gente graúda no mundo das letras, das engenharias, do magistério, das leis, da medicina, que era o gosto do pai; mas, filho ou filha é outro ser, e, ainda que seja a unidade do pai e da mãe, parecido com um ou com o outro, ou com os dois, é deles diverso. Mesmo que tenha um olhar parecido com o do pai, o jeito de se rir puxado à mãe, não é igual: ao fim do gesto, impõe-se o próprio, o do filho – cada um é feito das heranças genéticas, das tripas e entranhas todas do corpo, da vida e do jeito de viver do lugar, e tudo junto, reunindo as diferenças todas, vai formando com a massa do tempo, os juízos, os jeitos de olhar e ver e dizer as coisas, as crenças e sentenças de cada um, acabando o eu, o vivente, ser todos, e ninguém igual...

No Lajeado dos Diamantes, o pai de Amália estava a trabalho, havia dois meses; então, ela e a mãe foram ter com ele, por saudades e para as companhias boas e amorosas: da mulher-esposa e da filha. Era lugarzinho pequeno, vilinha restante do que fora o reboliço do garimpo da pedra preciosa que lhe dava o nome; umas poucas centenas de casas, de todos se conhecerem, porque, no avançar dos anos, foram se aparentando. Os limites territoriais do município eram, na parte sul, o território da antiga comunidade indígena descendente dos Jê, gente que um dia habitou o litoral e de lá foi expulsa pelos Tupis, para o interior do Brasil; era território reconhecido desde os tempos de Rondon, anotado em cartografia do Serviço de Proteção aos Índios, o já extinto SPI. Lugar bonito, de olhar, encantar-se e querer ficar, imerso, esquecido do mais – a sentir as águas limpas e ligeiras do Rio Piabanha, que seguia seu curso lavando e levando o sal da terra, para salgar a imensidão dos mares...

O Lajeado dos Diamantes, que um dia emoldurou aquela beleza com a feiura da lama, das crateras, dos vícios e brigas e mortes e ganâncias do garimpo, agora era um vizinho silente da aldeia; modorrento, desanimado para as coisas e iniciativas do progresso, como se querendo apenas viver a reprodução eterna de si mesmo, em paz. De algum modo, o Lajeado mais se amoldou à aldeia, que ela a ele; então seguiram sendo, cada um, do jeito das suas diferenças, para si. Logo que chegaram, Amália e a mãe foram levadas para conhecer a aldeia: viram no modo de ser indígena, nos liames daquela gente com a terra, outro mundo; as crianças sem roupas, com um ou outro adereço rústico a correr na terra-chã, livres, fazendo brotar alegria e contentamento sem esforço desde as mais pequenas, atirando-se do barranco nas águas ligeiras do rio, como se a lhes dizerem com seus gestos e algazarra, das suas intimidades com o mundo natural...

O jeito de ser das pessoas, quando muito diversos dos da gente, deixa os pensamentos em reboliço, prenhes de perguntas, admiração e repulsa se atropelando; e, sem o entendimento de si, em face do outro, viceja preconceito, desconsideração e a mesquinhez da negação da diferença, do que não lhe é normalidade...

Amália se viu achada nos encantamentos do lugar: não do Lajeado, nem da aldeia em si; mas, do que sentiu existir corporificando translucidamente outro ambiente, superior, formando uma ambiência leve e terna nos espaços dos dois lugares. Tudo lhe pareceu ser por si mesmo, a se manifestar displicente, sem outras intenções, senão as parturejadas nos seus amanheceres de sol e passarinhos; e ficou cismando naquele pensar, revirando-lhe as próprias profundezas, que desconhecia, onde nunca tinha ido e agora tateava às tontas, indo pelos desvãos de pensamentos vãos, talvez. Chegara num profundo estado de si, numa paragem, donde se via desmedida e podia imaginar aprendendo, quão imensos são os seres, quando se estendem muito além da estatura do corpo; e sentiu medo daquele pensar dissonante, desgarrado da normalidade: a normalidade é a segurança da suposta lucidez, é cadeia que protege da suposta loucura. E o pensar assim é saliente, é desarmonioso: movimenta desassossegando o corpo, querendo convencê-lo a dançar valsa nova, despido de vestes cândidas e se rindo alto, vendo-as esvoaçarem sem serventia no meio da rua, ao meio dia...

O encantamento não é coisa desse mundo de ganâncias, não; ninguém se encanta com raiva, com vontade de vingança, nem com choro de tristeza: encanta-se só com bondades e bonitezas, prenhe de riso bom. Benvinão, que chegara no Lajeado logo que soube da notícia do bamburro do Chico Diamante, guardava na memória as muitas histórias daquele tempo, as que viu e as que inventaram e lhe contaram; porque a vida não é feita só da dureza das coisas reais, vividas na realidade diária, não: a vida precisa de uma graça inventada, também. Então, quando Amália o conheceu e quis conversar, indagando-lhe das coisas e jeitos da vida ser naquele tempo, ele disse-lhe com a paciência dos seus quase noventa anos vividos: “Ah, minina, no garimpo, todo mundo que tá ali tem a ilusão de se enriquecer da noite pro dia; aí ninguém vê a destruição que faz, a feiura que é distruir um rio, um corgozin, riachozin bonito, à cata do diamante. Isso aqui era tudo revirado, lameado, de jeito de nem se via a cor da água, de ter que cavar cacimba e poço ali pra riba, pra ter água limpa pra beber e fazer comida...”.

Benvinão respondia com o gosto de relembrar: “A senhora pergunta, todo mundo pergunta de briga de garimpeiro com índio. Teve? Teve, mas, nunca nada de morte. É que a gente sentia e sente que tem diamante bruto nesse rio aí, no Porto de Pedra, sabe? Que fica abaxo da aldeia, que nem é porto mesmo, só parece porto: aí deram o nome de porto. Intão, ali tem diamante, porque teve gente que viu luz em riba do rio, vagando: é encantamento de diamante. Onde tem diamante, minina, tem isso de encantamento; aí todo mundo queria entrar lá, mas teve padre Antenor, que Deus o tenha! Quando tava tudo fervendo aí, ele chamou nós tudo lá nas beradas do Garimpo Véio, e disse assim, aconselhando: ‘óia bem: vocês não entra na terra dos índios, se entrar, vai ter puliça aqui e acaba até com este garimpo; aí vocês vão pra onde?’ Mas, acho que num entraro lá, foi porque aqui sempre foi garimpo pequeno, de poca pedra, mais chibiuzin, que num enrica ninguém; só o Chico Diamante achou pedra de ficar rico, pedra de muitos quilates, de mais de milhão, ele achou e sumiu: ninguém sabe direito do distino dele, nunca mais nem viro, nem ouviro falar dele. Aí acabou todo mundo se acalmando aqui assim...”

“A minina diz: ‘que lugar bonito!’ É bunito mesmo, cuma a minina viu; bonito e rico, igual todo lugar onde índio vive! Mas fica assim, estragado; porque ninguém pode entrar, né?” Amália riu. “Riso bunito, minina! Óia, riso é que mostra a bondade das pessoas: quem num ri, tá sofrendo de desumanidade, que é argum sofrimento, arguma dor, escondida na alma, que é o lugar onde Deus mora...” . “Mas, dizem que o senhor bamburrou; não ficou rico, seu Benvindo?” O velho parecia não gostar de falar de si, olhou-a e, meio a contragosto, respondeu: “Ah, minina, isso é conversa à toa desse povo...”

A gente se encanta pelo que vê, mas, mais pelo que imagina ter sido ou o que pode ser do que se está vendo; é isso que se entranha na gente por uma brandura boa, fazendo rir riso solto; mas, aí vem a necessidade que o real da vida impõe, e dispõe tudo, desarruma aquele acerto e manda o vivente pra onde não quer ir, mas vai, por precisão. Vai não viver o sonhado, vai para ser triste, como é o normal. Já fazia quase dois meses que estavam no Lajeado, quando a mãe disse ao pai, preocupada: “Tô gostando, não, desse apego de Amália com esse lugar, com aqueles índios...”, mãe vê a manhã, ainda na escuridão; “Ah, preocupa, não: mais duas semanas e vocês se vão, ela volta pra faculdade e esquece isso aqui”, disse o pai, querendo acalmar.

Os dias passam ligeiros, quando faz tempo bom. Quase dois meses e meio haviam se passado, e a mãe arrumava as coisas para voltarem: viajariam cedinho, os três, o pai ia leva-las, viagem de um dia inteiro. O pai de Amália voltando da obra, no finalzinho da tarde, passava em frente da quitanda do Tunico Gama, cumprimentou os que estavam à porta, um indígena conhecido lhe respondeu, rindo: “Boa tarde, parente!” Achou esquisito, mas seguiu, esqueceu. Em casa, à mesa, perguntou: “Estão prontas? Sairemos cedinho...” Pai, eu não vou!”, respondeu Amália, seca e nervosamente. O tempo pareceu para. Os pais se entreolharam, mudos. A comida ficou esquecida nos pratos. O silêncio mais sideral se impôs, num longo tempo de segundos. “Eu fico. Quero morar lá, na aldeia...” O pai lembrou do indígena: “Boa tarde, parente!”

O que é o viver, realmente – além de satisfazer as necessidades mais naturais, a fome em primeiro lugar? Mais que isso, né só ilusão, não, imposta pela normalidade? 

(*) ELISMAR BEZERRA DE ARRUDA é professor doutor das redes municipal de Cuiabá e da estadual de Mato Grosso. Foi presidente fundador do Sintep e Secretário de Cultura de Mato Grosso.

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br

 

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