Como se deu, mesmo, o passado – do que se vê anotado, nos compêndios de história? O que é verdadeiro, de caso acontecido e testemunhado por gente sem interesse de fama, nem de dinheiro? Pouco se sabe. A história aviva e obscurece o passado, por suas versões, pelo que se conta e pelo que se inventa; tem coisa contada que, nem o que é tido como autor do feito acreditaria, se vivo estivesse e visse; e riria de rolar no chão, vendo o que lhe atribuíram de coragem e intrepidez. Na história, claramente ou nos desvãos das entrelinhas, tem mentira desavergonhada, e, custoso, é desmentir o que já criou limo, musgo, de tão antigo e visto e reconhecido como certo ou verdadeiro. Mentira assim, deu poder de ser e viver como herói a um que, feito nenhum, de grande importância, nunca foi capaz de fazer; mas tá ali, escrito, tal que deixa as gentes de boca aberta, de tanta admiração, pelo que nunca existiu...
Mas, os fatos estão lá, do jeito que foram, da maneira que se deram e se acomodaram nos anos, nas décadas, nos séculos todos de idade, desde que ocorreram; os que vieram depois, é que os contaram dos seus jeitos, por mor de necessidade por alguma vantagem de dinheiro, de posição – porque, reparado bem, tem sempre um interesse em tudo. Inclusive dos santos, em tudo santificar, para a alegria de um viver quase reto, quase sem a alegria do gozo; mas, santo é santo, santificado. Eis que tudo depende do modo de ver e sentir, à vista do vivido e, mais ainda, do por viver. É quando entra isso de versão, do jeito do sujeito mostrar o que viu, ou ouviu dizer; de fato, quem só ouviu dizer, e quer dizer como se testemunha fosse, já começa a mentir – tal como foi a mentira tão perversa sobre os Irmãos Naves, sabe não?
A vida tem sido de muita mentira; mas, também, de verdades. É isso que dificulta tudo: fosse uma ou fosse outra, dava pra ver mais facilmente tudo que se visse – mas, tem sempre uma coisa escondida, que exige olhar treinado pra ver o que, o que não foi, não vê nunca. A mentira mata amor, faz Mãe se envergonhar do filho amado, faz inocente amargar prisão, ajuda gente ruim e avara juntar fortuna roubada e depois se exibir como se gente fosse. Daí Dorinha ter virado quase lenda: Um Conto de Réis caídos na beirada da rua de chão e poeira, dentro de um embornal feito de algodão cru com costura dobrada nas alças; ela reconheceu aquele pertence, seu corpo estremeceu com tanto dinheiro visto ali, largado, perdido, querendo um dono que o achasse: olhou melhor, para a certeza da propriedade e ganhou o rumo da casa de João Gregório da Anunciação....
Era já velho, quando se deu aquilo. Noutros tempos, João Gregório da anunciação choraria, mas, agora, não: as últimas lágrimas, chorou quando Rosália da Anunciação, sua mulher por mais de quarenta anos, morreu – ali secaram todas as que ainda umedeciam seu corpo já muito vivido. Depois tudo foi se secando, fechou-se em casa e para a vida, vivendo pra seus bichos, suas criações e plantas; nesse desalento e com o cansaço do viver, foi que decidiu vender parte do gado, não por precisão de dinheiro, mas por não dar mais conta de todos os afazeres com a criação.
Vizinhos e conhecidos se admiraram por aquela decisão: ele vendia uma outra rês, vez em quando, para as despesas com as coisas mais necessárias; mas, quando soube que Romualdo Boiadeiro havia chegado, foi dizer-lhe que pensava em vender a parte maior do seu gado, deixando o comprador admirado, pois sempre o procurava, à vista do gado bom que tinha, mas nuca comprava nada ou quase nada. E, de fato, o velho não foi oferecer a Romualdo Boiadeiro sua criação, como quem oferece mercadoria qualquer. Porque, como dizia sempre: “...criação não é mercadoria, não; cada bicho olha a gente do jeito seu, falando com os ôios, reconhecendo o jeito da gente, e gosta se a gente trata bem. Então, cuma é que se pode criar pra vender assim, como sabão, querosene?”. De modo que era bonito de se ver, tudo muito bem cuidado na pequena fazenda.
Romualdo Boiadeiro passava por aquelas bandas todos os anos, comprando gado, logo que reduziam as chuvas. Ia de jipe, onde punha do lado, um saco de dinheiro para o pagamento das muitas compras que fazia e, sobre este, um revólver Smith & Wesson 38; dizia-se que aquilo era para impressionar mais os possíveis vendedores, no fechamento dos negócios, das vendas. Comprava um pouco de cada criador, e seus peões iam reunindo aqueles pequenos lotes, até formar uma boiada que, às vezes, somava mais de mil cabeças. Daí, seguiam tocando o gado nas estradas para além do Sertão. Era bonito ver a boiada, a quantidade imensa de cabeças, os gritos dos peões, o estalar da pinhola, a corrida ligeira de um peão atrás de uma rês que se desgarrava, o berrante choroso. A tristeza ficava com algum criador, como João Gregório da Anunciação, que tratava os bichos como se gente fosse: chamava alguns pelo nome, de jeito que vinha lhe sentir o cheiro, a carícia da mão e palavras de mimo...
Então, acertou tudo com o comprador ali, na varanda da casa da fazenda, donde se via o curral: disse a quantidade de vacas, de bezerros e de bois, estabeleceu-se o valor, e Romualdo Boiadeiro pagou sem nem ir olhar o gado: comerciar com gente daquele quilate, ele sabia, não saía barato, mas era negócio de se fazer de olhos fechados. Contou nota por nota, deixando-as sobre a mesa, e apertaram-se as mãos, dizendo por fim: “– Posso mandar o pessoal pegar o gado, Seu João?” Com o consentimento do velho, Romualdo Boiadeiro deu a ordem, e os peões foram retirar o gado do curral; apertou mais uma vez a mão de João Gregório, montou no seu jipe e saiu fazendo poeira...
O velho não quis ver a criação sendo levada: entrou em casa, fechou as portas e ali ficou até não ouvir nem trote nem mugidos do gado se indo. Depois, com o silêncio de tudo, é que foi pra cidade num trote manso, cheio de pensamentos, de lembranças de um tempo bom. Foi nesse caminho, que João Gregório da Anunciação perdeu o embornal, onde havia guardado a maior parte do dinheiro recebido pela venda do gado; as outras duas partes, menores, tinha guardado nos bolsos fundos da surrada calça de tergal. Quando deu falta do embornal, voltou pelo mesmo caminho, procurando diversas vezes, indo e voltando, sem nada achar; fechou-se em casa mais triste, pensando que era castigo por ter vendido os bichos: rezou, pedindo perdão, compreensão aos bichos – mas, nada disse a ninguém...
Dorinha bateu palma na porta da casa: “Oh Seu João Gregório da Anunciação!” Chamou assim, tal como ele queria e gostava que todos os chamassem. Apareceu na porta, que se abriu rangendo, um homem de cara doída e corpo acabrunhado de quem tivera febre terçã: “– Sinhóra!”, respondeu-lhe. Via-se nele, que já fora muito forte, mas que o tempo lhe roubara as forças e as disposições para os fazeres mais brutos da lida; parecia desacorçoado, assim, sem ânimo, sem nem vontade pra estar ali, respondendo Dorinha. Ao contrário dela, que, franzina, voz fina e bem delicada, de nem saber gritar alto, disse-lhe com gosto de satisfação, alvissareira: “– Óia, tenho comigo que esse emborná é do Sinhô, né não?!”; levantando à altura dos próprios olhos, o achado...
O velho se iluminou como se num milagre de rejuvenescimento, mesmo como se ressuscitasse de uma morte em vida que parecia estar vivendo, ou morrendo aos poucos. Tristeza é coisa miserável: ela se esconde e ataca nos escombros miudinhos de um dizer mal falado, na lembrança que se alevanta na mente por causa de um jeito do dia entardecer, por uma desculpazinha qualquer, ela se entranha na gente e fica ali, amuada, entristecendo a vida. Mas, também, é coisa fraca, que não aguenta uma lufada de vento bom, dada por palavras bem pensadas para dizer na hora certa, e, veja que a desgramada desaparece num átimo, se aquele riso querido aparece no meio da manhã e se abre pra gente se dando frouxo, assim, sem exigências nem de se dizer nada – foi assim com o João Gregório, ao ouvir Dorinha dizendo aquilo!
O velho segurou firme no batente da porta, para ajudar as pernas bambas sustentarem o corpo, que, de tanta alegria se amolecera todo. Alegria é sentimento que nem tem jeito de explicar: é pra se sentir. Não era bem alegria, o que lhe tomara o corpo todo, era um contentamento nascido no mais de dentro do corpo, na alma talvez, que lhe suspendia o corpo no vazio dum tempo sem tempo para nada pensar; e disse como se não fosse palavras, mas sentimento: “– Dona Dorinha, do Céu! Só pode ser coisa de Deus!”
No lugar pequeno, as pessoas sentem a falta de qualquer um logo, dele sentiram, mas, falava-se que era de tristeza pela venda do gado, de modo que ninguém quis lhe importunar. Mas, mais ligeiro foi a notícia do achado de Dorinha: espalhou-se por todo canto, gente falando, inventando, converseiro terrível, de gente invejosa, que vive de inventar coisa pra desvê seu pouco valor. Dizia-se que Dorinha só quis devolver o dinheiro, e sem querer nada de recompensa, esperando ser esposada pelo velho; outros, que o velho nem lhe oferecera nada, e ela se arrependera de ter devolvido – dizia-se muita coisa, Dorinha nunca quis dizer disso, mais nada; ria do que lhe diziam, que diziam...
(*) ELISMAR BEZERRA DE ARRUDA é professor doutor das redes municipal de Cuiabá e da estadual de Mato Grosso. Foi presidente fundador do Sintep e Secretário de Cultura de Mato Grosso.
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