Às vezes me pergunto se não estamos vivendo uma nova versão da fazenda de George Orwell. Só que, em vez de animais rebelando-se contra os humanos, agora somos nós entregando nossos dados, nossa rotina e nossa intimidade todos os dias às plataformas. Ninguém mais precisa nos vigiar. Nos vigiamos sozinhos. Nos filmamos, nos expomos, nos vendemos. Voluntariamente.
No começo da internet, a promessa era bonita. Seríamos livres, todos com voz, com espaço, com oportunidade. A rede era o lugar onde qualquer um poderia falar, ser visto, ser alguém. Mas o que era para ser revolução virou palco. E o palco exige performance.
Hoje percebo que repetimos o roteiro da Revolução dos Bichos, mas com outros figurinos. Os porcos ainda estão no comando. Só que agora usam ternos de grife, vendem fórmulas mágicas e escrevem os códigos dos algoritmos. Eles decidiram que tipo de conteúdo merece existir. Eles definem quem é visto, quem é ignorado e quem será silenciado.
No livro, o cavalo Sansão dizia: “trabalharei mais”. Hoje, vejo Sansões digitais por todos os lados. Gente que acorda, grava stories, responde comentários, grava vídeos, faz reels, publica opiniões. Cansados, mas sem poder parar. Viciados no próximo alcance. Dependentes do próximo engajamento. Sem tempo de respirar. Sansão só queria ser útil. A gente também. Só que na lógica da internet, ser útil é ser visível. E quando a visibilidade acaba, você é substituído. Simples assim.
As ovelhas, que só repetiam palavras de ordem, hoje repetem trends, hashtags e discursos prontos. Não porque sejam burras. Mas porque o sistema foi feito para isso.
Pensar dá trabalho. Questionar tira seguidores. O algoritmo não premia a dúvida. Ele alimenta certezas prontas, frases virais e indignações instantâneas
.
E eu me pergunto: quanto vale a nossa paz? Quanto custa a nossa privacidade?
Estamos entregando tudo. A rotina. O sofrimento. As alegrias. Os filhos. O café da manhã. O luto. A briga no casamento. O cansaço. A ansiedade. Tudo vira conteúdo. Tudo pode e deve ser postado. Como se a vida só tivesse valor quando convertida em cliques.
Mas não é só isso. A exposição nos fragiliza. Nos torna alvos fáceis para crimes digitais, perseguições, manipulações emocionais, golpes, deepfakes, vazamentos. O que antes era íntimo agora é capital. O que era nosso virou dado. O que era silêncio virou barulho.
E no meio disso tudo, a pergunta que me persegue: será que ainda somos donos de nós mesmos?
Não sou contra a tecnologia. Vivo dela. Pesquiso, ensino, acompanho de perto a transformação digital. Mas talvez justamente por isso eu consiga enxergar com mais nitidez o que estamos perdendo. Não se trata de abandonar a internet, mas de usá-la com consciência. Não se trata de demonizar as redes, mas de entender que há vida fora delas e que essa vida precisa ser preservada.
A privacidade virou resistência. O silêncio virou autocuidado. E não postar tudo é um ato de inteligência.
Orwell nos alertou que revoluções podem ser traídas. E quando percebo que trocamos a liberdade de sermos por uma obrigação constante de parecermos, eu entendo que a nossa revolução também foi sequestrada.
Talvez seja hora de escrevermos um novo manifesto. Um manifesto onde não é preciso expor tudo para existir. Onde menos é mais. Onde a presença importa mais que a performance.
Porque no fim das contas, ninguém foi feito para viver em vitrine. Nenhum coração aguenta ser algoritmo. Nenhuma alma floresce sob a luz fria do engajamento.
A vida real acontece quando o celular está virado para baixo.
A conexão mais poderosa ainda é a do olhar direto, da escuta sincera, do abraço que não precisa de legenda.
O que nos torna humanos não é quantas pessoas nos veem. É o que somos quando ninguém está olhando.
Que a próxima revolução não seja sobre visibilidade, mas sobre verdade.
E que nessa nova fazenda, a gente tenha coragem de sair do curral e voltar a ser gente.
(*) ALEK MARACAJÁ é Presidente da ABRADi-PB, fundador da Ativaweb, autor de Brasil Digital. Prof. ESPM/UFPB, Especialista em Big Data, IA e política de comunicação.
Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br
Clique aqui e faça parte no nosso grupo para receber as últimas do HiperNoticias.
Clique aqui e faça parte do nosso grupo no Telegram.
Siga-nos no TWITTER ; INSTAGRAM e FACEBOOK e acompanhe as notícias em primeira mão.