Esse questionamento de Furtado foi a ignição da vontade de saber mais. Nos anos seguintes, Furtado começou a estudar a vida de Virgínia Bicudo, uma das mães da psicanálise brasileira, e se surpreendeu ainda mais. Em meio ao governo de Jair Bolsonaro, o cineasta entendeu que falar sobre a vida de Virgínia era necessário. "Queria entender como chegamos a esse ponto no Brasil. Pensei também na Alemanha nazista - como um país tão culto, que nos deu tantas coisas boas, caiu naquele horror?", diz ao Estadão.
Amizade em tempos sombrios
Depois disso, o roteiro de Furtado passou a seguir caminhos curiosos. Ao invés de fazer uma cinebiografia quadrada de Virgínia, o diretor de Saneamento Básico e Ilha das Flores decidiu falar sobre um encontro entre a psicanalista brasileira, interpretada por Gabriela Correa, e sua mentora e supervisora de casos, Adelaide Koch, vivida por Sophie Charlotte.
"Elas se conheceram em 1937, justo quando Getúlio Vargas proclamava o Estado Novo, instaurando uma ditadura", diz Furtado. "Em meio a tudo isso, as duas se encontram e começam a construir algo novo: a psicanálise no Brasil. Dramaticamente, achei fascinante".
O longa-metragem se passa quase que inteiramente dentro de uma sala com essas duas personagens conversando. O tempo passa, imagens de arquivo às vezes ajudam a dar o contexto geral de vida de Virgínia e Adelaide. Mas são apenas recursos coadjuvantes em uma trama em que a conversa e a interação entre as duas é o motor do longa-metragem.
Encontro de gerações
Após um período mais dedicado ao roteiro e à produção, Furtado voltou à direção em Virgínia e Adelaide, mas não sozinho. Ao seu lado, a cineasta Yasmin Thayná, realizadora do aclamado curta-metragem Kbela, trouxe uma nova perspectiva ao projeto.
"Eu teria dado um tom melancólico, enquanto Yasmin encontrou um caminho mais alegre, apesar das dores das personagens - Virgínia com o racismo, Adelaide com o nazismo", diz.
Yasmin confirma ao Estadão que essa abordagem foi intencional. "Abordar a história pelo viés da amizade foi um grande acerto. Tiramos a rigidez intelectual e levamos para um campo mais afetuoso - as relações humanas, a troca", explica a cineasta. "Foi importante tirar essas mulheres do 'segredo', como disse a professora Janaína Damasceno. Tornar pública a existência e a importância delas para a história da psicanálise e do Brasil".
Gabriela Corrêa e Sophie Charlotte também não enxergaram o projeto como uma biografia convencional, com arco narrativo previsível e aquele tom visto em dezenas de filmes por aí. Para elas, o filme é uma celebração da importância histórica dessas duas mulheres.
"O centro para mim não foi o que aconteceu com Adelaide, e sim aquela frase: 'o que fazemos do que fizeram de nós'", sintetiza Sophie, referindo-se aos traumas da imigração forçada e da adaptação a uma nova realidade cultural e linguística que Adelaide enfrenta.
Gabriela celebra a parceria com a colega e o processo de criação. "Como atrizes, a gente entra num trabalho propondo, contribuindo, mas sempre pedindo licença. Isso foi muito rico para o processo como um todo, compreendendo melhor quem era Virgínia", reflete.
Além do acaso
Furtado, imerso nas discussões sobre psicologia, história e psicanálise durante a produção do filme, parece ter absorvido algo do pensamento junguiano sobre sincronicidades. O cineasta celebra que Virgínia e Adelaide estreia exatamente 80 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial - o evento que forçou Adelaide a deixar a Europa.
Mais do que coincidência, ele também relembra que as filmagens começaram no aniversário de Virgínia, em 21 de novembro. "Os astros conspiram!", conclui o diretor, sugerindo que há um propósito maior na ressurreição destas histórias esquecidas.
(Com Agência Estado)
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