O Amor não existe por si mesmo, é certo – mas, de tão humano e necessário que é, parece haver sido desde sempre; como se alguém, um dia, o tivesse esposado e, desde ali, vigesse até os nossos dias, como o que é. Não foi assim, embora seja a invenção inaugural do humano, e a mais importante, na longa caminhada de homens e mulheres no fazimento da humanidade, não foi invenção própria, nascida de dentro da cabeça ou do coração. Foi coisa copiada, o Amor. Foi de ver os demais bichos se gostando, do riso bom de estarem juntos, quando quase bichos éramos, que, invejosos, quisemos ser daquele jeito. Foi uma fêmea que começou, ainda antes de ser mulher: apiedou-se do macho vindo da caçada, cheio de cansaço e feridas, perna mordida pelo bicho caçado e morto; ela o olhou de perto, passou a mão ao redor do ferimento, levemente, e, sentindo o cheiro de suor, auscultando o respirar de dor e precisão, puxou-lhe a cabeça para o seu regaço macio e quente. Então, ele foi se aconchegando amparado, foi se amolecendo num sono bom, e tanto conforto teve, que só acordou com a noite alta, no mesmo colo, na mesma carícia dela; ela se riu toda para o acordar dele, como se nenhum cansaço tivesse...
Assim foi, faz milênios. Aquele, que foi o primeiro acariciado, diz-se, nunca mais se arredou dela; de maneira que deu pra andar ligeiro, fazer tudo no tempo curto, pra tempo maior passar junto dela, vendo o riso de dentes amarelos à mostra, sentindo a satisfação no rosto, e o corpo se abrindo de alegria boa e continuada; de jeito a dar inveja em todos os demais. E nasceram filhos e filhas – que ele amou, porque eram dela nascidos; e ela amou, porque eram dela, uma parte íntima, que ele ajudou fazer existir, à luz! E a terra foi se enchendo toda de gente...
Maria Gertrudes nunca se perguntou sobre o Amor, sobre amar além do sentimento santo que tinha pela mãe e pelo pai, até que se viu precisando de outro amparo, não de coisas, de ouro, de prata; era necessidade de outra presença para aliviar o sentimento de solidão, que se lhe inundou o espírito, desde que Romão Macedo apareceu falando-lhe ao coração. Sentiu toda a ambiência da casa materno-paterna, que sempre lhe fora suficiente, ser pouca; sentiu as referências sentimentais se esfrangalharem, desarrumando aquele conforto filial, bom e terno. Cresceu de dentro pra fora, o que se lhe entranhou pelos olhos, ouvidos e pele: careceu-lhe, noite e dia, do que passou a imaginar, desde quando ouviu Romão lhe falar, cheio de branduras e suavidade. A casa, a cama, o amor de pai e mãe, tudo que lhe bastara e a fez ser o que era, era como se desvanecesse, quase inservível; sentia-se como a nhambu que recebeu de presente de um tio, da qual cuidou, deu comida e aconchego seguro, mas, quando cresceram-lhe as penas, bateu asas, e abandonou todo o seu conforto e foi embora...
Era bonita: de corpo e de caráter, diziam. Respeitosa, respeitada, trabalhava nos ofícios de casa como era de ser, prestativa, riso de quase dengo sempre disponível, ela tinha; era moça invejada, para casamento que recobriria o noivo com qualidades maiores, de jeito que as pessoas lhe diriam da sorte de tê-la como esposa. Então, lugar pequeno, todo mundo comentou: “Gertrudes tá namorando!”, “Com quem?”, “Ah, é com o Romão Macedo! Rapaz bom...”. Com a aprovação dos pais de Gertrudes, os dois andaram de mão dadas, foram às festas, sentaram-se à mesma ladeados por familiares, comeram prenda arrematada no leilão da festa do padroeiro, com alegria verdadeira. Formaram um par admirado, feito para se casar, formar família bonita; como era o costume, a moça aprendeu bordar, a pintar e costurar: deu-se ao exercício daquelas habilidades em panos que bem poderiam ser para um enxoval, mas isso, se rindo alegre, não confirmava...
Num dia, em meados de janeiro, quando o novo ano já corria pra normalidade, depois das alegres festas de fim de ano, Romão Macedo não foi, à noitinha da quarta-feira, à casa de Gertrudes, como sempre fazia nos quase dois anos de namoro. Os olhos dela se estenderam compridos, diversas vezes, para o estirão da rua, querendo divisar sua silhueta vindo vê-la; em vão ficou a esperar, ele não veio. A noite passou arrastando as suas horas mortas, insone. Deu graças ao dia, ainda envolto nas franjas da madrugadinha: querendo saber o que se deu, pra ele não ter vindo; o dia se alongaria em preocupações até que tivesse notícia, a causa da ausência. Coração pulava descompassado, respiração curta, desânimo até para as coisas triviais: “Bênção, Mãe; Bênção, Pai!”; mas, Mãe vê com o coração: “Deus lhe faça feliz, filha!”, “Deus a Abençoe!”, respondeu o Pai, economicamente como era seu modo...
A rua não viu os dois, mãos dadas, naqueles dias da semana terminando; mas, não foi de se reparar muito, senão por um ou outra fuxiqueira de prontidão, que pôs atenção no fato. Quiseram saber de Romão: “tá no retiro, tem vaca amojando...”. Na terça feira, dia insosso, Romão foi à casa de Gertrudes sem aviso e sem arrumação na vestimenta: como se viesse da lida. Ela sentiu fraqueza no corpo, tontura, de vê-lo ali, daquele jeito, cara sem alegria, com jeito distante: “Oi, boa tarde, Gertrudes!” disse gravemente, cumprimentando sem nenhum afago; cumprimento seco, descorado, como quem não sabe dizer o que quer dizer...
Amor verdadeiro termina, acabado, assim como o fim do dia, pra renascer depois, noutro recomeço, esquecido do que foi? Diz-se que sim, por causa do sofrimento, sofrido por maldade do outro: aí termina, esquece-se por esforço, pra nem lembrar; porque, lembrança ruim, dorida, faz o sofrer continuar. Diz-se que não, que amor verdadeiro segue eterno, lembrado sempre, mesmo quando tem fim, por mor de dureza de coração andejo. Dona Edith enviuvou, trinta e sete anos depois de se casar: pôs luto, deu toda a roupa que tinha, vestiu-se de preto, roupa preta, vestido longo, sem nenhuma alegria de cor; assim viveu até morrer mais trinta anos depois. Era amor verdadeiro? Diz-se que sim, diz-se que não. Ela nada disse: viveu com ele vivo, dentro de si; viveu com ele morto, dentro de si. O Amor viceja. Mas, também, parece desviver o corpo, num abandono das forças e vontades das carnes, pra se entranhar na alma e lá ficar, amuado, como se fosse por si mesmo, quando não é...
Angélica do Gonzaga era católica, o marido, Amélio Gonzaga era crente, e viviam sob o comentário das pessoas: “É de se admirar: o marido crente e ela não foi ser crente mais ele...”, diziam fuxicando. Mulher alta, equilibrada no caminhar gracioso, fala mansa e esclarecida, boa de se ouvir, boa de se ver: bonita; respeitosa, respeitada, pelo marido e por ela mesma – nunca faltou a uma Missa, gostava de amparar quem precisava. Tinham posses, de gado e comércio; mas, filhos não tiveram. Quando o marido morreu, num repente, coisa de coração fraco, ela tinha cinquenta e três anos, dos quais, trinta e cinco casada com Amélio; então, comentou-se: “Essa daí, morre viúva...” Não foi assim, por que a Vida gosta de ser do seu jeito, sem traçado reto e decidido antes, por gosto desse ou daquele; segue feito leito de rio, que vai por seu gosto, contornando o que acha ser bom desviar, despencando-se por prazer de saltar despenhadeiro, até se acomodar na salgadura do mar, mar sendo, como se sempre fora...
Angélica do Gonzaga ficou sendo dele, mas do seu jeito e vontades: deu-se para quem seus desejos se riram, levando quem quis ter para o conforto de sua casa de aconchegos caros, gozou-os com a força dos seus impulsos carnais, sem ais nem escândalos que se ouvisse na rua. A rua dizia maldades, mas por inveja, que por desaprovação: era livre, pela morte do marido estava livre de compromisso marital; “Porque não se casa novamente, Angélica?”, perguntou-lhe Gersina, amiga antiga e boa. “Homem pra casar, era Gonzaga, Gersina; outro, pra isso, não quero: sigo sendo dele, pra sempre”, respondeu encerrando a especulação. A rua toda soube da resposta: “Errada, não tá”, “Certa, não tá”; diziam, vendo-a livre, sob olhar pidão, desejoso, de homens livres e casados. Pra coisa ser certa, carece de um para dizê-la; pra coisa ser errada, carece de outro pra dizê-la; de jeito que um terceiro, estará dum lado ou do outro – e o meio da distância entre um e outro, será por precisão, necessidade, puro interesse? Talvez...
Nem à venda de Manduca, Gertrudes foi mais: enfronhou-se em casa, sem ânimo pra mais nada, desde quando Romão pôs fim ao namoro, dizendo que se mudaria pro Sul. Um tio seu, tinha arranjado vaga num seminário presbiteriano, queria seguir vida religiosa, ser pastor, talvez. No caminho novo, de caminhada longa, de estudos, de provações materiais e espirituais, não tinha tempo pra Gertrudes, não por desamor, por falta de benquerença: não. Era o quê, então? Não soube responder direto, claramente, disse só, somente pra não ficar no vão: “Nem sei se volto, ou quanto tempo demoro por lá; então não posso pedir pra esperar, não seria certo...”. Mas, Gertrudes queria ficar à espera, esperando o tempo que fosse, a alimentar amor pra si mesma, pra viver dizendo ao mundo que esperava; porque também se vive de esperança vã, porque não é vã pra quem espera – e a verdade de quem vê, percebendo que é vã, não cabe nesse vão...
A manhã nasceu pela gritaria desesperada de Anália, moça vizinha: “Não faz isso, não, Gertrudes!”
Em camisola de morim macio, com ramalhetes bordada em ponto-cruz, a mostrar os contornos do corpo bonito, Gertrudes se levantou e caminhou trôpega quarto à fora. Amanhecera sem sentir necessidade de si, olhos ardendo, o espírito em trapos: a dor se entranhara por todo o corpo, na noite insone, vergando a alma à necessidade do alívio. Assim, o corpo não suporta ser e pode se anular, pra ter alívio. Passou pela cozinha, onde a mãe fazia o café, sem lhe levantar os olhos, nem dizer nada; a mãe a olhou triste, em silêncio de não saber o que dizer. Aí ouviu o grito de Anália e correu pra ver: Anália segurava Gertrudes pela cintura, impedindo-a de cair no poço, onde queria se jogar pra morrer de queda e afogada! Com o rosto banhado de choro, Gertrudes nada dizia, gemia palavras desconexas, tentando se desvencilhar das mãos da amiga e da mãe, pra se jogar para a morte. Chegou mais gente, dominaram suas forças, deitaram numa cadeira e lhe deram água com açúcar. Olhos fechados, trêmula, Gertrudes gemia...
(*) ELISMAR BEZERRA DE ARRUDA é professor doutor das redes municipal de Cuiabá e da estadual de Mato Grosso. Foi presidente fundador do Sintep e Secretário de Cultura de Mato Grosso.
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