“De um lado, a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro, a privação de tudo para aqueles que não têm nada.” Com essa frase — que poderia ser a legenda oculta de quase todas as suas imagens — Sebastião Salgado condensou a tragédia moral de nosso tempo. Sua recente partida nos deixa um legado difícil de carregar: a tarefa de olhar o mundo sem desviar o rosto, sem desbotar a dor, sem colorir com falsas esperanças aquilo que ainda permanece insuportável.
Salgado fotografava em preto e branco, mas o que ele revelava era, paradoxalmente, o espectro inteiro da condição humana. Suas imagens não romantizavam a miséria, tampouco nos ofereciam a ilusão da neutralidade. Eram retratos de uma liberdade negada. De um mundo onde nascer do lado errado da história significa carregar nas costas uma sentença silenciosa de que liberdade não é um direito universal, mas um privilégio escancarado.
O que ele nos legou não foi apenas uma estética, mas uma ética da atenção. Cada rosto capturado pela lente de Salgado parece devolver a pergunta essencial: afinal, o que significa ser livre?
Somos oficialmente livres, a Constituição assegura e a democracia liberal celebra. Mas o cotidiano insiste em desmentir esse enredo. A liberdade de escolha, exaltada como virtude suprema, torna-se uma farsa quando só pode ser exercida por quem tem os meios materiais para tanto. A liberdade de ir e vir não vale muito para quem só pode ir até onde o transporte precário permite. A liberdade de educar os filhos esbarra no teto das escolas públicas sucateadas. A liberdade de cuidar da saúde se dissolve nas filas dos hospitais públicos lotados. Não por acaso, as perguntas mais banais se tornam insuportavelmente políticas. Por que não jantamos nos melhores restaurantes, se somos livres? Por que não viajamos? Por que não escolhemos?
É fácil descrever a liberdade como valor. Difícil é garantir as condições para que ela deixe de ser retórica e se torne experiência vivida. Difícil e, talvez, neste mundo organizado pela lógica da escassez, até utópico.
Reconheçamos que transformar essa “liberdade em preto e branco” numa liberdade em cores não é apenas desafiador - é um projeto que exige ruptura com tudo o que aprendemos a aceitar como normal. Pressupõe redistribuição, reparação, reimaginação das formas de viver e conviver juntos. E mesmo sabendo que o mundo resiste, que o capital captura, que os sistemas se reproduzem com eficiência brutal, é preciso manter acesa uma centelha; a da inquietação.
Porque se não podemos transformar tudo, ainda podemos recusar a anestesia. Podemos manter vivo o incômodo. Podemos - como Salgado nos ensinou - aprender a ver de verdade, ver onde a liberdade não chegou e, ao ver, nos recusar a normalizar.
Talvez a liberdade plena seja mesmo inalcançável sob as estruturas que nos cercam. Mas entre a resignação cínica e a esperança ingênua, existe um território onde vale a pena permanecer, o da resistência sensível. A arte de manter-se atento, mesmo sabendo que o mundo não vai mudar amanhã. A escolha de continuar nomeando o que falta. Porque, no fim, a dignidade não se quantifica mas se reconhece.
E talvez seja isso o que as imagens de Salgado nos pedem, mesmo sem dizer qualquer palavra: que a liberdade, quando não é de todos, não é ainda liberdade. É apenas mais uma moldura bonita, mas vazia.
(*) FABRICIO CARVALHO é Maestro e Membro da Academia Mato-Grossense de Letras.
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