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Artigos Domingo, 04 de Maio de 2025, 13:51 - A | A

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Domingo, 04 de Maio de 2025, 13h:51 - A | A

ELISMAR BEZERRA ARRUDA

A carnificação do amor é o que inventa e desinventa a vida

ELISMAR BEZERRA ARRUDA

O Amor é sentimento festejado universalmente: ninguém em sã consciência blasfema o Amor; que não é qualquer sentimentozinho impúbere, que faz a criatura chorar à noite toda e amanhecer com vontade de vingança, de machucar o que o desprezou. O Amor Verdadeiro é o que perdoa, porque sabe, e se refaz alegremente. Assim, e tanto, que todas as religiões têm no Amor as suas referências existenciais, a razão da criação e continuidade de cada uma, de todas elas; algumas, há milênios. Do sacerdote mais evoluído, o crente mais penitente, ao político safado, o empresário mais avarento e o juiz perverso, o Amor é o elemento com que todos se afiguram revestidos: uns por devoção, outros por hipocrisia, para encobrir o caráter putrefato. O Amor é invenção humana antiga...
Há uma concepção antropológica seminal, que, observada bem, revela a materialidade que atesta o nascimento do Amor em nós humanos; diz que, quando o primeiro humano não abandonou o outro à morte ao vê-lo cair ferido, e cuidou dele até ficar são, ali foi que a Humanidade teve início. Assim, por aquele gesto, a humanização dos humanos e do Mundo começou e nunca mais parou. Foi a Paleontologia inquieta, a revirar terras, buscando vestígios antigos, enxergando vida em resquícios minúsculos, que, num desses escarafunchar, achou um osso humano com marcas de fratura e cicatrização; então, os escarafunchadores insistentes gritaram alvissareiros: “Eis aqui a marca de quando os humanos se olharam necessitando-se, em face das durezas da Natureza, e inventaram o cuidado, o carinho: a eternização da vida!”

Naquele osso cicatrizado, num tempo antiguíssimo em memórias fossilizadas, viu-se a vida reinventada pela compaixão: um olhar junto com um riso de acalanto, carícias de mãos rústicas, uma boca mastigando um chumaço de folhas até virar um emplastro, que, colocado sobre a ferida do doente, ainda com a quentura da boca, aliviou as dores do enfermo. Ali nasceu um sentimento tão muito mais íntimo e profundo, que o mais gozoso copular natural. Então, pela primeira vez, as mãos trouxeram comida à cama de um doente e lhe deram água – que, em meio à dor, riu agradecido e estendeu a mão e os dedos se entrelaçaram por novo sentimento. Revelava, a cicatrização do osso, que alguém havia inaugurado a velação de um doente e, por noites e noites insones, comovido com suas dores, cuidou até as feridas se fecharem e a perna ganhar força e ele saltitar alegre-vivo; desde ali, os olhares se reinventaram, o do que sarou e o do que cuidou, enxergando-se pela necessidade definitiva de não se perderem e não se apartarem mais...

Esse fato rasgou o véu do tempo, do começo ao seu sem-fim, parindo a Humanidade; porque plenificou-se do sentimento nascido daquele gesto, por suas significâncias a unificarem corpo e espírito, primeiro aquele grupo e, depois, todos os demais nos dias e anos e séculos e milênios que se seguiram sem-fim – Amém. Então, mais nenhum-sozinho enfrentou tudo o que lhe representasse ameaça, perigo: porque viram sentindo que, mais de um, era um mundo de entendimento e força; daí que o olhar de cada um-sozinho se fez pouco demais para enxergar as coisas, e a precisão do olhar-junto do outro, dos outros todos a dizerem o que era, impôs-se. Assim, desinventou-se pra sempre, o indivíduo-em-si: aprendeu-se a sorrir com o riso do outro, a falar com o entendimento da fala do outro, a sentir desejo no corpo a fremer o desejo do outro, a ter em si o outro e, assim ser, eternamente.
Sabe, não? A eternidade está no outro, e do outro lado, que não se alcança ir sozinho...

Nem Cidinha, nem os irmãos, nem seus pais e avós – nem os avós dos avós de Cidinha – souberam dessas coisas todas, acontecidas muito antes do antigamente de que falavam os seus “mais velhos”. Para eles, Escola era coisa de além, muito além, Sertão – de modo que, somente Cidinha e os irmãos se sentaram em frente à professora, e para desasnar um pouco: aprender ler, escrever ao menos o nome e fazer conta no papel. Cidinha queria estudar mais, mas não teve por onde; ali ficou. Sem nem lembrança de data da menarca, agora vivia atormentada pelos sinais fortes do corpo maduro, pleno de desejos, e o rigor moral, severo, de um pai de poucas palavras; tudo tensionado ao limite, pelo olhar pidão e gestos duramente contidos de Antônio Severiano, filho mais novo da família Coelho Menezes, dona de fazenda e muito gado.

Assim, que dera pra acordar na madrugadinha, antes de todos, e ficar silente na cama como se dormisse, com o corpo abrasivo, sensível ao toque das mãos indecisas, sob as cobertas: a cabeça entontecia com pensamentos indevidos, e sem forças para orientá-los para além do que lhe exigia as carnes indômitas. Cidinha amanhecia acabrunhada pelo que o corpo lhe exigia, especialmente desde que sentiu Tonho tão bem pertinho de si, que imaginou suas carnes; gostava de Tonho, mas sabia do desgosto dos pais e irmão com o namoro: era sujeito sem modos, rico e fuleiro. Tentava rezar, silenciosa, querendo que passasse aquelas coisas; mas, a reza se perdia no meio, esquecia as palavras, o tormento aumentava, as carnes fremindo, num desassossego ruim e bom. Amanhecia com vergonha de si, receosa de olhar a mãe: pedia a bênção cabisbaixa, sob o calor da lenha ardendo fogão e o cheiro do desjejum preparado pela mãe totalizando o ambiente. A mãe a olhava desconfiada, meio que sabendo; levantava o olhar para a mãe, e se via revelada, despida por aquele olhar terno, afetuoso e silente da mãe.

A mãe, à vista das angústias do olhar da filha, também se angustiava, preocupada; então, dias antes dos festejos de São João, manhãzinha, depois que os homens da casa saíram para a lida com o gado e na roça, a mãe lhe perguntou-dizendo, cheia de receios: “– Cida, minha fia, tu e o Tonho tivéro alguma coisa? Me diga a verdade...” Cidinha respondeu com a certeza da verdade: “– A sinhora sabe que não, mãe!” A mãe disse-lhe, terminando a conversa: “– Óia, ni tu, eu confio; nele não...”

Do sítio da família de Cidinha, até o Distrito dos Cavalcantinhos, era distância de légua e meia, talvez duas: lonjura pouca, pra quem vivia naqueles sertões. Os festejos de São João eram afamados, vinha gente de toda a redondeza; uma semana de festas: dias de rezas, procissão, cantorias, leilão, dança, folia boa; para as crianças: pau-de-sebo e, às vezes, o Véio do Carrossel vinha montar aquela geringonça, toda feita em madeira, para rodar, entontecer e a meninada sair dele cambaleando, para o riso dos outros. Era um tempo dos parentes se encontrarem, amigos, de começar namoro, namorados matarem as saudades. Foi toda a família: roupa nova, sapatos bem limpos, sandálias vistosas, todos com jeito de gente “bem apessoada”; cada filho montava um cavalo bem arrumado, o pai, João Antão Corado ia ladeado pela esposa Antônia e, ao lado da mãe, Cidinha, numa charrete bem cuidada, que lhes dava conforto e status...

Chegaram no Distrito quando o sol já pendia pro ocaso, mas em tempo para a Missa que abria os festejos, às seis horas: Hora da Ave Maria. Como ocorria sempre: ficaram todos na casa de Adamastor, homem paciencioso, sitiante, irmão de Antônia, que morava ali, no Cavalcantinhos desde o início, quando chegou criança com os pais. Gostava da irmã, do cunhado e dos sobrinhos: recebia todos com muita satisfação e alegria, ele e a mulher, Gertrudes. Juntos foram à Igreja, cheia de gente conhecida, de tudo quanto era canto; era bonito e alegre ver os cumprimentos das pessoas se reencontrando. Cidinha, bem vestida, bonita, chamava atenção: não só do Tonho Menêis, como era mais conhecido o namorado, mas, também de Rosalvo Modesto, que como seu olhar comprido e desesperançado, conformava-se com a sua pequenez, ante a riqueza dos Coelho Menezes.

Os festejos atravessaram a semana, e só se encerraram no domingo, com comida servida pra todos: churrasco com carne doada por devotos e por gente que só queria aparecer. Dezenas de espetos de pau com a carne assada eram entregues à cada um: uns comiam ali mesmo, com os seus, alegremente; outros levavam os espetos consigo: pra comer em casa ou na estrada, na volta pra suas casas. Era tanta fartura, que nem briga de cachorro por comida tinha...

Era setembro, Cidinha e a mãe viviam a agonia de tanta aflição, não podiam mais esconder a situação; então, depois do almoço, depois do seu cochilo na rede da varanda, quando João Antão saía com os filhos atrás de uma rês que havia sumido, Antônia disse-lhe em seco: “– João, meu véi, óia, preciso lhe contá uma coisa, e num é boa, não...” Fez-se silêncio de ouvir coração batendo, o mundo quedou-se em espera, ouvia-se o gemido desamparado de Cidinha no quarto. “– Que aconticeu...?”, perguntou o esposo; com o silêncio da esposa, insistiu: – Quê que tá aconticendo, Antônia?” Num jeito penoso, Antônia disse esmorecida: “– É nossa fia, meu véi: ela tá prenha...”; disse e cobriu o rosto com as mãos trêmulas, em choro, esperando a raiva do esposo.

Segundos de silêncio desesperador, eternos para Cidinha, que tudo ouvia do quarto, chorando pra dentro de si em soluços abafados; tremeu-se mais, ao ouvir o pai chama-la aflito: “– Cida, venha cá!” Os pés de Cidinha se arrastarem vagarosos até a sala: olhos no chão, peito arfando de vergonha e medo, soluçava choro que lhe sacudia o corpo todo; parou em frente ao pai indefesa, sem levantar o rosto disse como se esperasse sentença: “– Sim, meu pai...”. Vê-la ali, daquele jeito, dava pena; com sua agonia transbordando por toda a casa, ganhando os currais e os varjões derredores, num tempo sem fim de espera. Os irmãos estáticos, cabisbaixos, silentes, amargos, esperando o dizer-final, sentencioso, do pai; ele olhou a filha com olhar de amor profundo, que nunca manifestara com carinho, sequer de lhe alisar os cabelos – como era próprio do seu modo de ser; olhou a esposa amada, companheira de décadas, dia a dia companheira, olhou tudo com sob o silêncio carrancudo. Todos os sentimentos de pai e esposo e homem a atormentarem seu espírito, atiçando o ser patriarcal que vigia adormecido em todos os da sua iguala impolida naqueles sertões; aí, com voz embargada, como nenhum dali jamais vira e ouvira, disse: “– Eu nunca que pensei de passá por isso, minha fia: por essa tristeza!” Mais silêncio, entrecortado pelo choro das duas mulheres...

João Antão foi até a porta, olhou lá fora o tempo, no mesmo silêncio voltou: olhou novamente a esposa, a filha e os filhos a esperarem seu dizer final. “– Cidinha, minha fia; num vô aumentar minha tristeza cum mais tristeza: essa é nossa casa, aqui tu vai ficar no amparo da tua mãe e deste véio e dos teus irmão; a tua mãe sabe cuidar do que é preciso pra voceis dois...” Disse, pegou o chapéu que descansava no espaldar de uma cadeira e saiu acompanhado pelos dois filhos; desamarram os cavalos e montaram, ouvindo ainda o gemido de Cidinha abraçando a mãe: “– O sinhô me desculpa, pai...” Passaram-se os meses e o estado de Cidinha a fazia mais mulher-mãe: a barriga crescendo lhe dava mais ares de mulher madura; nunca mais fora ao Cavalcantinhos, já estava acertado que a parteira Mãe Marina era quem “pegaria” a criança: quando os primeiros sinais indicassem a proximidade do parto, ela seria trazida pro sítio e ali ficaria até o nascimento e os primeiros dias do resguardo da mãe.

Na casa ninguém nunca mais falou ou quis notícia de Tonho Menêis, principalmente depois que se soube, que, bêbado, disse, gabando-se, do desvirginamento de Cidinha, e do desprezo por gravidez e filho. Riu-se, falando de nunca se prender em casamento. Os irmãos, Adalberto e Martinho, se condoeram com a tristeza da mãe e da irmã, quando souberam daquela absurdeza; viram o pai diminuído em sua autoridade e bom nome: encolerizados, nada disseram. A pior coisa, dizia-se no Sertão, é engolir mágoa, raiva: ela fica sendo remoída por dentro, até que sai explodida. A mãe se preocupou com aquilo, o pai também: “– É um muleque sem qualidade, deixa prá la..”; disse pedindo esquecimento aos filhos.

Meados de janeiro. Os dois irmãos foram se deitar mais cedo, depois de pedirem as bênçãos dos pais; anoiteceram e não amanheceram. Com o sol secando o sereno, e na falta do cavalo dos dois, Antônia e o marido nenhum dos dois encontraram no quarto; pressentiram o pior. João quedou-se silente, doído em seus sentimentos de pai. No quarto dia depois, no meio da manhã, Adamastor chegou esbaforido, dizendo antes de descer do cavalo: “– Antônia, minha irmã, cadê o João?” A irmã pressentindo coisa ruim com os filhos desaparecidos, respondeu perguntando: “– Que aconteceu, Adamastor?” Ouvindo o trote ligeiro do cavalo, João tinha vindo ver quem era, na mesma preocupação da esposa: “– Que aconteceu, Adamastor?” Respondeu sem rodeios: “– Coisa feia, João: acharo o tal do Tonho Menêis morto, queimado!” Um frio ruim trespassou a todos. “– Apregaram com um prego, as partes dele num toco de um pau, aí cercaram ele de graveto e paia e gaio de madera, depois dexaro um canivete em cima do toco e tacaro fogo ni tudo! Diz que na agunia, ele cortou as partes, mas num deu conta de saí do fogo e morreu ali mesmo, queimado!”

A notícia correu o Sertão inteiro. Ainda que ninguém gostasse das arrogâncias do tal Tonho Menêis, a igreja se encheu de gente: não foi por condolências, mas pra verem o caixão pequeno do que sobrara dele, comido pelo fogo. Nunca mais ninguém ouviu falar dos irmãos Adalberto e Martinho. A polícia veio, perguntou, ouviu, foi embora: ninguém, de certeza, sabia quem fez aquilo; inscreveram em suas anotações os dois, como suspeitos. “Ah, foi sirviço bem feito”, dizia uns; outros, que “foi muito desumano, mesmo que ele merecesse”. Tudo se calou nas lonjuras e durezas do Sertão, onde ninguém gostava de “falar demais”...

(*) ELISMAR BEZERRA DE ARRUDA é professor doutor das redes municipal de Cuiabá e da estadual de Mato Grosso. Foi presidente fundador do Sintep e Secretário de Cultura de Mato Grosso.

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br

 

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