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Domingo, 11 de Dezembro de 2011, 08h:00

Dois velhos

Mudo eu estava, e não só, monoglota que sou, por não falar patavina em inglês ou francês, mas por estar diante de um mito, ele, Ernest Hemingwai. O autor de textos telegráficos, períodos curtos, cacoete saudável que trouxe do jornalismo para a literatura

MÁRIO MARQUES

 

DIVULGAÇÃO

Ele gostava do sol e do mar, um “gringo” mais para latino e que nada tinha de descendente do Velho Mundo, vindo ao mundo na América do Norte.

 De sua ascendência européia, herdara apenas o espírito passional típico da Espanha e suas touradas, berço da latinidade na Europa, nação pela qual nutria paixão e o levou, como por osmose cultural a amar Cuba.

“Habana Vieja”, especialmente, que continua linda até hoje. De uma imponência que as palavras não traduzem, porém os sentidos e a visão percebem isso em meio a toda pobreza de velhos sobrados decadentes, com rebocos das paredes caindo aos pedaços e deixando tijolos carcomidos à mostra. Solene, como ruínas de Roma ou de Atenas!

Mas adorava Paris. Paris é Paris e foi lá, mais precisamente no Harry’s, seu bar predileto localizado numa ruela da Cidade Luz, que o encontrei sorvendo o seu uísque. O recinto estava lotado, e ele me apontou, gentilmente, uma cadeira em sua pequena mesa de dois lugares postada a um canto.

- Felizes são vocês - dirigindo-se a mim, sem nenhum rodeio - que hoje conhecem, através do Google, melhor do que eu, que freqüento aqui há pelo menos três décadas, a história deste boteco tão badalado e cujo único mérito, “se isso constitui mérito algum” - fez questão de acentuar -, é o de servir tira-gostos de cebola miúda em conserva, além do uísque honesto. O que também não constitui nenhum favor, porque nesta banda de cá do Atlântico não está em vigor nenhuma Lei Seca..., acrescentando: “igual existe na América”.

- O tipo de lei burra – frisou, com ar de desalento -, por ser inócua e não ter feito com que as pessoas que gostam de beber deixassem de consumir suas doses na clandestinidade, além de que, partindo do princípio de que tudo que é proibido (“não é mesmo?”, e nesse instante fazendo um sinal com a cabeça, buscando minha aprovação), se não é mais gostoso, pelo menos aguça a curiosidade e o desejo dos que não bebiam e agora com a Lei Seca, ficam loucos para provar um trago.

- O tipo de lei que a máfia adora, por criar novo mercado para a venda de bebida falsificada à base de álcool com corantes. Em seguida, balbuciou algo, fazendo uma cara de nojo diante da possibilidade de alguém engolir tal beberagem, o que me fez, na hora, lembrar de certos uísques “made in Paraguai”...

Prosseguindo, agora numa referência positiva ao Harry’s, talvez - pensei cá com meus botões - para que eu não achasse que o local só tivesse fama por ser freqüentado por ele, e nada mais possuísse de especial ou de bom: - “Ah, prepara drinques iguais aos que são servidos em Manhattan! E as receitas que levam champanha na mistura, a champanha é legítima, e não são feitas com espumantes italianos”.

Desta vez, elogiou.

Mudo eu estava, e não só, monoglota que sou, por não falar patavina em inglês ou francês, mas por estar diante de um mito, ele, Ernest Hemingwai. O autor de textos telegráficos, períodos curtos, cacoete saudável que trouxe do jornalismo para a literatura e que o consagrou como um dos maiores romancistas de todos os tempos, tendo sido laureado, em 1954, com o prêmio Nobel da Literatura. Consagração que coroou o prêmio Pulitzer, que recebera em 1953, por ter escrito o “Velho e o Mar”, em 1952, e considerado o seu melhor romance.

Um ano depois desse encontro no Harrys, aos 61 anos, doente e depressivo, logo após o alvorecer do dia 2 de julho de 1961 - e lá se vão mais de cinco décadas que separam a data do seu suicídio deste ano de 2011/2012 -, ele explodiu a cabeça disparando contra si uma de suas espingardas de caça.

Passado tanto tempo, parece que, como num sonho, foi a noite passada que sentei à sua mesa. E não estranhei o fato que o entendia perfeitamente em bom português, e nem a diferença temporal que nos separava - eu então com 22 anos e ele sessentão – constituía qualquer obstáculo à nossa convivência. E nem a circunstância de que ainda não tive o prazer de conhecer Paris. Um detalhe menor diante da grandeza que esse encontro representou para mim.

Quem sabe, um dia vou conhecê-la... E vou ao Harry’s, com certeza, nem que seja para beber uma limonada.

Literatura tem disso, o dom de romper barreiras. Além de que, eu também sou um velho! Só me falta o mar.

(*) MÁRIO MARQUES DE ALMEIDA é jornalista. www.paginaunica.com.br. E-mail: [email protected]