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Sexta-feira, 18 de Setembro de 2020, 10h:13

Espaços mutilados

PAULO CESAR DE SOUZA

REPRODUÇÃO

PAULO CESAR

Livros das séries iniciais ensinam há muito tempo como ter atitude mais complacente com o planeta. É uma tentativa de resgatar a conexão perdida entre homem e meio natural. Contudo, adultos movidos por preguiça, desprezo, ganância não internalizam velhas lições. Ensinamentos que todos os dias a natureza incansavelmente desvela diante de nós: as ações antrópicas têm consequência. Uma verdade tão contundente que está presente no motor primitivo do cérebro, mas muitos de nós seguimos nossas vidas ignorando a perversidade desses efeitos com a falsa sensação de estarmos protegidos por um redoma ou anestesiados pela inércia como esse tipo de postura não-reativa fosse suficiente para conter ou desencorajar a reverberação do mal. Esse artigo coloca em evidência mais uma intervenção humana insidiosa e desastrada: trata-se de um estacionamento nas adjacências da Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania - Centro Político Administrativo - com supressão total de todos os organismos para nos carbonizar dentro dos próprios carros. É o tipo de obra que não deveria sair da cabeça de uns desatinados, mas se veio ao mundo deveria ser objeto de sanção jurídica. Uma irresponsabilidade ambiental que escancara a fragilidade da legislação urbanística bem como reforça a cultura predatória de nossa civilização ao impor severas alterações dos sistemas básicos de suporte à vida e os saturando com a primazia de nossas necessidades que não encontram limites.

Como último insulto lançaram um pavimento que impede qualquer percolação de água ao subsolo, outra estranheza já que há tecnologias alternativas menos impactantes que poderiam ter sido viabilizadas para manter um microclima mais saudável. O asfixiamento dos canais de retroalimentação de águas subterrâneas, aumento de temperatura e tantos outros efeitos colaterais que esse tipo de intervenção ocasiona. Em pleno Século XXI, em uma das cidades mais quentes do planeta, erigir uma obra como esse estacionamento em plena capital, ao lado de instituições que nasceram e existem para proteger direitos difusos é um protagonismo inexplicável destituído de critério e lógica. Há algo dramático nisso tudo. Em uma perspectiva sombria parece que estamos cooptados pelo imaginário de um fugaz benefício – tudo no curtíssimo prazo – o que demostra nossa incapacidade em aprender e agir de maneira mais ética como o meio que habitamos. O tempo da natureza opera com lentos mecanismos de restauração o que nos remete a um paradoxo: humanos são expansivos, querem coisas e esse acúmulo em ter mais, contradiz o tempo geológico em que o planeta leva para absorver e diluir nossa punção material e energética que nas escalas requeridas desordena e desestabiliza seus processos graduais de resiliência. Não me admira teses hollywoodiana que em seus enredos nos descrevem como uma promissora comunidade viral cujos hábitos de sobrevivência nos lançam à colonização de santuários distantes em cuja trajetória se amontoam cadáveres e dejetos com a típica devastação de tudo o que tocamos: como um vírus letal  que suga e assassina seu hospedeiro.

Mas esse naco de solo ao lado da Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania não é o único apêndice estranho que já nos tirou o título de cidade verde, é na verdade um erro clonado de outras intervenções infelizes como o estacionamento da Assembleia e o Próprio Parque das Águas, cuja intensidade de devastação os colocam no topo de desconcertantes obras que mutilaram centenas de árvores, lançaram material impermeabilizante no solo e no caso do Parque permitiu edificações pouco harmoniosas com um espaço onde deveria predominar o verde, agora dominado pelo cinza monocromático do concreto e do asfalto.

Como esperar da coletividade um comportamento ético e proativo em matéria ambiental, se o próprio poder público não consegue embutir em seus projetos e práticas um mínimo de respeito pelo nosso "futuro comum"? Os órgãos ambientais são omissos, ou meros chanceladores desse desastre?

 

(*) PAULO CÉSAR DE SOUZA é mestre em Economia e Graduado em Direito.