Nos últimos meses, durante o período mais intenso de chuvas, nossa preocupação coletiva se voltou, mais uma vez, para a ameaça do Aedes aegypti e as doenças que ele transmite. Falamos muito sobre os perigos da fase aguda da Chikungunya – a febre alta, as dores excruciantes no corpo, o mal-estar súbito. Vimos casos graves, inclusive neurológicos, que nos alertaram para o potencial devastador desse vírus. Mas agora, enquanto os casos agudos podem diminuir com a mudança da estação, enfrentamos uma realidade talvez ainda mais desafiadora e silenciosa: o legado crônico da Chikungunya.
Em nossos consultórios médicos aqui em Cuiabá – e falo como ortopedista especialista em pé e tornozelo, mas sei que colegas de diversas áreas compartilham desta visão, estamos recebendo um número crescente de pacientes que, meses após terem tido Chikungunya, continuam a sofrer. A febre foi embora, mas a dor nas juntas (articulações) não. Rigidez ao acordar, inchaço que vai e vem, um cansaço persistente e, principalmente, dores que limitam atividades simples como caminhar, segurar um objeto, trabalhar ou cuidar da casa.
Essa é a fase crônica da doença, definida quando esses sintomas duram mais de três meses. Observamos um padrão comum: a dor parece "gostar" mais das pequenas juntas das mãos, punhos, tornozelos e pés, tornando o dia a dia um desafio. Estudos mostram que cerca de 30% a 50% das pessoas que tiveram Chikungunya continuam sentindo dores nas articulações por muito tempo, mesmo depois que a febre vai embora. Essas dores podem ser tão intensas que dificultam caminhar, trabalhar e realizar atividades simples do cotidiano.
E muitos pacientes relatam, intrigados, que a dor é pior justamente naquelas juntas onde já tiveram alguma lesão no passado, como uma antiga torção ou cirurgia. É como se a inflamação da Chikungunya encontrasse e "acendesse" um ponto fraco antigo.
Mas por que isso acontece? Durante a infecção, nosso corpo produz uma inflamação forte para combater o vírus. Em muitas pessoas essa inflamação se resolve após algumas semanas. Em outras, porém, por motivos que ainda estamos entendendo completamente, o "interruptor" da inflamação não desliga.
Uma substância inflamatória-chave nesse processo é a interleucina-6 (IL-6). Estudos mostram que pessoas com a forma crônica da Chikungunya frequentemente mantêm níveis altos dessa IL-6, o que ajuda a manter as juntas inflamadas e doloridas. E aqui entra um fator crucial: cada pessoa é única. A intensidade da resposta inflamatória e a produção de substâncias como a IL-6 variam enormemente. Isso explica por que, após uma mesma epidemia, vemos vizinhos, amigos ou familiares evoluindo de formas tão diferentes: alguns se recuperam totalmente, enquanto outros enfrentam meses ou anos de sofrimento.
Diante da dor persistente, é natural buscar alívio. Mas, aqui reside um perigo: o uso de anti-inflamatórios (como ibuprofeno, diclofenaco, nimesulida, etc.) sem orientação médica. Esses remédios, se usados de forma errada ou por muito tempo, podem trazer sérios riscos aos rins, estômago e até causar sangramentos. Pior ainda é o uso de produtos ditos "milagrosos", sem registro ou comprovação científica, que podem ser ineficazes e perigosos. Nunca se automedique!
Para nós, médicos, o desafio também é grande. A dor crônica da Chikungunya pode se confundir com outras doenças reumáticas, exigindo investigação cuidadosa. Precisamos estar atentos para pensar na Chikungunya, mas também para não culpar o vírus por todos os problemas articulares que aparecem, garantindo o diagnóstico correto.
O aumento de pacientes crônicos sobrecarrega o sistema de saúde. A pergunta que não quer calar é: estamos preparados, em Cuiabá, para essa demanda crescente por tratamento da dor, fisioterapia e acompanhamento especializado? Será que apenas os reumatologistas darão conta? Ou precisamos de um esforço conjunto de clínicos, ortopedistas, fisiatras, fisioterapeutas e toda a rede de saúde?
A Chikungunya crônica não é um problema do futuro, é uma realidade agora. E ela nos deixa um recado claro: a prevenção da fase aguda é mais importante do que nunca. Combater o mosquito Aedes aegypti hoje, eliminando focos de água parada em nossas casas e quintais, é a forma mais eficaz de evitar meses ou anos de dor e incapacidade amanhã.
Precisamos, como sociedade cuiabana, encarar essa realidade. Exigir e praticar a prevenção de forma contínua. E, ao mesmo tempo, cobrar e construir um sistema de saúde mais preparado para acolher e tratar adequadamente aqueles que já sofrem com as sequelas. O próximo ciclo de chuvas virá. Os mosquitos estarão aqui. E nós estaremos mais fortes e preparados? A responsabilidade é de todos.
(*) Dr. WESLEN BARROS é médico ortopedista, especialista em tornozelo e pé e membro da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia, em Mato Grosso - SBOT-MT*
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